quinta-feira, 21 de abril de 2011

Será esse futuro da música portuguesa avaliado e determinado por obras-ainda-por-fazer nos países centrais?

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A actual contestação à primazia exclusivista do ocidente e dos seus saberes e a reorganização do mundo em curso no quadro das diferentes globalizações implica uma reflexão sobre os valores recebidos. Com a continuação da primazia desse valores, com a eficácia da constelação poder/saber dos países centrais que regula a vida musical, tudo parece indicar que o futuro da música portuguesa e de outros países será necessariamente determinado e avaliado por obras-ainda-por-fazer nos países centrais. A assunção dos valores recebidos pressupõe que o futuro irá ser igual ao passado neste aspecto; que o dispositivo que comanda a vida musical será sempre operativo da mesma forma que é hoje. Desse modo, faça o que fizer, o compositor português estará condenado à fatalidade de ter de se ajustar ao que entretanto for feito nos países centrais, uma vez que serão necessariamente essas obras futuras que irão constituir o critério a partir do qual tudo o resto será avaliado. Esta projecção do futuro ajuda a compreender melhor o presente se considerarmos que continuará a ser a cultura central a estabelecer as normas em relação às quais as culturas menores se devem posicionar.
A permanência deste tipo de convicções nos programadores e directores das instituições culturais portuguesas irá incessantemente reproduzir a inferioridade da produção local face ao Outro, considerado global, superior, mais avançado, etc. Este tipo de avaliação, sem o uso de ecologias de saberes e práticas artísticas, distintas mas paralelas e, em sentido estrito, contemporâneas, não será feita caso a caso, obra a obra, mas já estará determinada mesmo antes dos casos concretos, antes de existirem obras concretas, pela assunção antecipada da inferioridade. Esta inferioridade é, antes de mais, a inferioridade dos próprios programadores, atingidos pelo velho complexo que fustiga a maneira como as elites portuguesas se vêem a si próprias. É a hegemonia que determina a forma como se lê e interpreta a realidade. É necessário sublinhar antagonismos, disputas, conflitos entre visões do mundo para que a política seja possível, dizem-nos Laclau e Zizek. A hegemonia actualmente existente deve ser confrontada por conteúdos concretos alternativos. É o controlo efectivo do subcampo contemporâneo por um grupo muito restrito de agentes, são as suas crenças e convicções que fecham o espaço de enunciação central a tudo aquilo que não aprova, que desconhece ou que ignora. É forçoso contestar este poder criador de desigualdade. Fora das estruturas principais do subcampo, fora dos festivais de música contemporânea, existe uma maior disponibilidade para o diverso do mundo. É por isso que muitos compositores reclamam justamente algumas peças tocadas fora de Portugal com sucesso. Isso verificar-se-á na maior parte dos casos no exterior do subcampo, tanto em circuitos alternativos e minoritários relacionados com músicas electrónicas como em iniciativas dispersas de salas de concertos fora dos circuitos dominados pelas estruturas do subcampo. No seu interior, o carácter especializado do conhecimento que arvoram ter, a sua filosofia da História, impede os agentes em geral de considerarem ou compreenderem a diferença dos produtos, os gostos, os universos de sentido quer das diferentes periferias quer mesmo daqueles compositores que, nos próprios países centrais, não se reconhecem nos critérios vigentes no subcampo. Estes dissidentes constituem-se como periféricos no interior do seus próprios países o que salienta a contradição entre as narrativas oficiais dos vencedores e a diversidade do real. Daí a violência dos debates internos nesses países.
Estes antagonismos devem ser sublinhados, como aqui se procurou fazer, na medida em que ampliam o âmbito possível de acção e assinalam a produção de objectos artísticos próprios da indesmentível diversidade do mundo. Essa diversidade é inelutável e incomensurável. Resta-nos enriquecê-la, dando respostas individuais e diversas aos impulsos criativos próprios de qualquer comunidade artística, mesmo que o destino das obras continue a ser o do desperdício patrimonial.
in Música e Poder, Conclusões Gerais.

Que futuro haverá para a música portuguesa da tradição erudita no contexto europeu? I

Apresento aqui alguns extractos das conclusões gerais do livro Música e Poder.
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Se a diferenciação entre nós e eles é a estratégia identitária básica, então as identidades de fronteira são aquelas em que a diferenciação é sempre problemática, sempre em aberto e nunca resolvida. Talvez aqui radique a permanência de discursos idênticos sobre períodos históricos muito distintos. Esta problemática traduz-se numa ansiedade centrada em dois fantasmas: o do atraso de Portugal em relação à Europa e a recorrente necessidade de uma rápida modernização. Deste ponto de vista, como estado de permanente ansiedade, a música portuguesa e a sua narrativa reflecte em vários graus e escalas a sucessão interminável de períodos de atraso e de períodos de modernização. São dois topoi interligados do ponto de vista da necessária superação: é o diagnóstico do atraso que obriga à necessidade da modernização. Em relação às estruturas-base da actividade musical, músicos, orquestras, partituras, compositores, professores, etc., a cada “modernização” – de alcances variáveis – sucede-se um novo desajuste, um novo atraso, sempre visto em relação à Europa, mítica ou mitificada, o lugar onde existe aquilo que “cá dentro” não existe ou não funciona. A consciência, também variável, desta permanência estrutural cria um dos pólos da identidade de fronteira: aqui, onde vivo e componho é o país onde não há condições, estruturas, apoios, etc. O outro pólo, os “outros”, a “Europa”, “lá fora”, tem duas dimensões: por um lado é-me dado a ver na programação internacional a que posso semanalmente assistir nas suas várias salas de apresentação, o “moderno” que devíamos conseguir ser mas não fomos ainda capazes. Estas salas, com destaque para a Gulbenkian, são o “lá fora” trazido “cá dentro” todas as semanas. O eufemismo corrente “de nível internacional” é o leitmotiv de quase todos os programadores e de quase todas as programações culturais. Todos optam por essa auto-representação individual ou colectiva e é ela que sustenta a produção de inexistências.
Face a essa presença do Outro europeu, do moderno, do avançado, face a esse convívio regular com a pequena europa, o espectador português, especialmente das elites, assume maioritariamente, neste campo musical específico – mais do que em outros – a ilusão de ele próprio “estar na Europa”, de “ser moderno” e de ter um gosto tão requintado como qualquer outro europeu. Deste modo imagina-se no centro, identifica-se com a sua própria imaginação do centro e aprende a desviar o olhar para o outro lado da identidade de fronteira. Poderá até admitir que nós somos nós em vários outros aspectos mas, pela sua vida espiritual, alimentada e realimentada pela vivência da frequência de concertos e dos espectáculos, imagina-se parte desse Outro. A forma que melhor descreve o principal problema que analisámos é essa: na vida musical portuguesa em geral prefere-se desviar o olhar para longe daquilo que se produz aqui. Daí a primazia do “lá fora”.
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Uma das dificuldades desta tarefa analítica é justamente o facto de, em Portugal, como noutros lugares, se olhar a Europa como uma entidade una, sem fracturas, sem desigualdades culturais. Há várias europas, a Europa mítica enquanto centro irradiador de cultura, ciência e poder e as Europas periféricas vivendo simultaneamente à sua sombra e debaixo do seu fascínio. As reflexões sobre a cultura europeia, na actual fase de confronto cultural com a predominância dos Estados Unidos em múltiplos aspectos, inclusivamente a sua predominância a nível dos imaginários culturais, tem sido muitas. Ora este tipo de reflexões, por importantes que sejam, não pode ignorar nem a diversidade nem a desigualdade internas da Europa. Como a tendência principal é, pelo contrário, a de encontrar e unificar os factores que fizeram da Europa o que ela é historicamente, avultando a consideração da cultura europeia vista como um todo, daqui resulta uma negligência patente dos parentes pobres dessa cultura. A questão que tratamos neste trabalho entronca nesta relação entre a Europa forte e a Europa fraca. Como foi bem assinalado por Chakrabarthy, Boaventura de Sousa Santos e Eduardo Lourenço, aquela cultura europeia que nos parece una, que é celebrada como sendo uma, foi formada durante vários períodos históricos recheados de conflitos e através de construções reais ou simbólicas, e essa mitificação ignora os aspectos culturais que foram negligenciados, menorizados, esquecidos pelos vencedores no seio da Europa. O objecto que nos propusemos tratar, a música portuguesa da tradição erudita, é uma das várias expressões artísticas menorizadas pelos vencedores da modernidade do Norte, e a sua subalternidade prossegue até hoje no contexto da União Europeia que evolui “a duas velocidades”. As razões da subalternidade são tanto internas como externas, mas as suas manifestações estão sempre muito interligadas. É na relação desigual de poder entre os agentes activos no campo cultural dos países centrais e os agentes locais que radica o essencial da ausência; incapazes de qualquer negociação em termos de troca cultural e com forte tendência para se auto-inferiorizarem face ao poder/saber que emana do centro, transformam-se em verdadeiros agentes locais do poder do centro, como grandes e infatigáveis compradores. Daqui decorre que aquilo que é visto como “simples característica transitória” do atraso tem-se mantido nos sucessivos períodos históricos. Aquilo que em numerosos textos é referido como “o estrangeiro” é, na verdade, constituído por um campo, um grupo restrito de pessoas e instituições que controla e regula a vida musical chamada internacional: não se pode constituir um campo a não ser a partir de indivíduos, diz Bourdieu. O seu espaço de enunciação localiza-se nos países centrais da Europa forte. Se existe um força centrífuga que atrai para esse espaço localizado numerosos compositores, verifica-se igualmente que o seu espaço de irradiação tende a ser o resto do mundo no qual a cultura ocidental adquiriu presença e primazia.
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Todos estes aspectos configuram um sistema cultural de dominação e hegemonia: tem sido protagonizado por um bloco histórico e estético que entretanto vai perdendo lentamente o seu controle hegemónico sobre a cultura na viragem do século, embora esse processo esteja muito longe de estar consumado. Os agentes, os solistas, os maestros, os compositores, foram criando uma verdadeira tribo que percorre anualmente os diversos festivais associados ao subcampo e, por vezes, são requisitados por instituições mistas. Apesar de o número de espectadores nunca ser grande, sendo muitas vezes mesmo muito reduzido, a independência das estruturas do subcampo é assegurada pelo prestígio simbólico adquirido junto dos ministérios da cultura e outras entidades oficiais que, com maior ou menor dificuldade, continuam a assegurar o seu funcionamento.
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Através da mise en abyme que poderá caracterizar o trabalho do artista, o objectivo central deste trabalho foi o de relacionar a ausência da música portuguesa com a hegemonia do dispositivo cultural formado nos países centrais, com o poder administrativo-cultural das suas instituições. A ausência da música portuguesa não se verifica porque ela seja inferior, sem qualidade, sem interesse – é, antes de mais nada, principalmente ignorada e desconhecida – e não se manifesta num vácuo. A ausência existe porque defronta um dispositivo de poder que não quer deixar de o ser, que nem sequer se vê a si próprio como poder. Vê-se como natural, como produto da relevância adquirida pelas práticas anteriores, relevância verdadeiramente construída ao longo do séculos XIX e XX e nunca questionada, nunca problematizada, traduzida e alicerçada numa visão universalista do campo musical erudito. Esse dispositivo de poder/saber construiu um fosso, uma linha abissal que só é atravessada num dos dois sentidos.

in Música e Poder, Concluões Gerais.

quinta-feira, 14 de abril de 2011

"As viagens e os erros" publicado nas Autobiografias do JL em Fevereiro de 2007

As viagens e os erros

Todos temos uma noção mais ou menos vaga de que a percepção daquilo que vemos, do que nos é dado a ver, muda de acordo com a nossa posição de observador. Se eu estiver de pernas para o ar, as coisas à minha volta mostram-se de uma forma descentrada e invertida; deitado no chão e de olhos fixos no ar a diferença é menor mas, mesmo assim, os ramos das árvores apresentam uma peculiar distribuição espacial. De novo de pé tudo volta à familiaridade habitual excepto se a esperiência nos tiver afectado a confiança nos sentidos. Deste exercício instrutivo toda a gente pode concluir coisas idênticas sobre a importância do lugar e da posição específica da qual se olha o mundo. Mas quando se trata de valores e de construções ideológicas, subitamente, ninguém tem dúvidas sobre a indiscutível certeza do seu olhar habitual. Será deste processo de interpretação do mundo a partir das possíveis variações de lugares e posições que afectam as nossas visões do mundo que partirei. O tema será, por isso, a viagem e o erro.
1. Nasci numa casa em Vila Nova de Gaia que já aparece em litografias dos finais do séc. XIX, localizada onde a Ribeira do cais de Gaia começa a subir a encosta. De lá vê-se o rio e a Ponte de cima para baixo e o Porto em frente. Era bonito. Em 1975 fiz uma viagem de carro a Paris com 3 amigos passando por Salamanca, Barcelona, Arles, à vinda por Chartres, San Sebastian e Burgos. Quando voltámos e dei de frente com o mesmo sítio que conhecia desde que nasci, percebi que nunca tinha olhado para ele da perspectiva que quem viu outros lugares. Não era só bonito; era inacreditável e único.
2. Muitos anos mais tarde decidimos levar Max von Egmond – o evangelista da Paixão segundo São Mateus gravada por Leonhardt – a jantar à Ribeira. Como conhecia bem o local decidi descer a Rua General Torres em Gaia para lhe mostrar a perspectiva dali. Max disse aquilo que diz a maior parte das pesssoas quando o vê pela primeira vez. Mas já no restaurante disse mais: Venho a Portugal em Setembro há mais de seis anos, apanho sempre daqui o avião para Amesterdão, porque é que ainda ninguém me tinha trazido aqui? Porque é que não me tinham mostrado isto?
3. Alguns anos depois alguns músicos de Lisboa meus amigos foram ao Porto tocar duas peças minhas. Decidiram ir passear para ver a famosa Ribeira. Disseram-me depois algumas coisas. Tinham ido pelo túnel. Quem é que teve a ideia de fazer aquele túnel ali? Era horrível. O próximo passo do passeio tinha sido a contemplação do esgoto que vai parar ao rio mesmo por baixo da Praça. Também era horrível, toda aquela porcaria a sair dali e os peixes num combate feroz pela maior quantidade de merda disponível.
4. Moral desta história: a realidade está lá em todo o seu esplendor de encantamento e merda. Aquilo que determina o olhar, a sua qualidade, é a posição do observador em relação ao mundo. O olhar efectua uma selecção com base no que tem dentro de si, da sua capacidade de ver. No mesmo sítio onde aquele holandês escolheu ver o sublime aqueles portugueses escolheram ver o túnel e a merda. Pode-se escolher entre o horizonte largo e o foco estreito.
5. Na actual circunstância histórica, ser músico é estar permamentemente entre esses dois pólos. Há coisas que vistas de Portugal parecem ser de uma maneira, de fora parecem de outra e cá, depois de lá, ainda de uma outra. Depois das viagem feitas muitos dos mitos imaginados caem fragosamente da construção “sublime” laboriosamente construída pelos países do centro – aqueles que Eduardo Lourenço designa de “mais europeus do que o resto da Europa”- e que todos recebemos desde muito cedo como “lá fora”, como “uma imaginação do centro”. Como é que se pode conceber que cheira mal no metro de Paris a ler o “Le Monde de la musique”, ou que cheira mal mesmo cá fora em Londres a ler o Grammophone, ou nos canais de Amesterdão a ler um catálogo de uma exposição de Van Gogh?
7. A vida é uma aprendizagem interminável da capacidade de olhar o mundo. As viagens permitem a comparação dos horizontes e das merdas. Uma das coisas que mais me obceca actualmente é, perante a possibilidade de ver o sublime, escolher ver a merda. Julgo que, por vezes, não nos resta outra hipótese. A incapacidade colectiva de articular qualquer relação com o sublime – refiro-me à vida cultural portuguesa no seu todo –vai forçando os artistas à redução progressiva do seu horizonte, inicialmente exaltante, à observação atenta da qualidade das merdas.
8. Protestos? Ouvem protestos? Se ouvirem, isso deve-se à grande capacidade que temos para elaborar historiografias míticas. Descobrir a Índia “sem sair do meu quarto” como dizia o grande poeta. É fácil acreditar na historiografia mítica da música portuguesa: é a história daquilo que não existe senão como imaginação do que podia realmente existir. Apesar de existir a matéria (as obras) não existe o que a concretizaria enquanto realidade relevante. Pareço profundo? Obtuso? Abstruso?
9. Sobre ligações entre as viagens e os erros: por exemplo, enganei-me quando vim da Holanda em 1990 e pensei que um dos problemas da música portuguesa da tradição europeia nas últimas décadas tinha sido, e era ainda, a hegemonia do pensamento pós-serial no ensino, nas práticas institucionais e nos discursos críticos. Não era. O caso era muito mais grave; hoje essa supremacia já não existe, pelo menos daquela forma que antes queimava o terreno à sua volta. Talvez subsistam ainda vestígios nas práticas das instituições culturais com maior indiferença ao mundo (o vento, lá fora...) e grande capacidade de re-construção ideológica a partir daquilo que não é verdade. Os problemas permanecem.
10. Em 1989 o meu grupo de jazz fez 5 concertos em Inglaterra. organizados por Portugal 600 para celebrar o famoso tratado. Ainda tenho lá em casa algumas cartas que me escreveram ingleses a pedir discos porque não os encontravam lá à venda. Nunca houve nem nunca lhos enviei. Os 30 LPs que levei venderam-se todos nos dois primeiros concertos. Micheal Collins - director dessa instituição que levou muitos músicos portugueses a Inglaterra – marcou-me um almoço com David Jones: Sim senhor, já sei que correu muito bem, produzo-vos um concerto em Londres, numa sala média; só preciso de ajuda da editora”. Isso devia querer dizer dinheiro ou apoio mas não sei exactamente de que tipo. Fiz o que devia: guardei os números, em Lisboa contei a conversa e passei os telefones. Não aconteceu nada, como é óbvio. Soube que vários músicos passaram pelo mesmo. Não sabia ainda que as editoras, especialmente as multinacionais – tal como as escolas de música – desempenham um papel bem determinado: são agentes locais da distribuição e venda do que as sedes centrais produzem. Só por equilibrismo atlético querem ou podem ir além disso. Já mais recentemente os vários casos de “sucesso internacional” – entre aspas por causa da
tentação mítica – de alguns bons artistas portugueses seguidos de um regresso a casa e às dificuldades habituais confirmam que o fundo da questão está algures noutro plano. Uma parte do poder exercido pelas hegemonias que regulam o sistema das artes assenta em três aspectos: primeiro, no facto dos lugares de decisão real serem sempre longe; segundo, na eficácia dos agentes locais que acreditam ser cosmopolitas; e terceiro, no facto de todos aceitarmos isso como “natural”.
12. Depois das minhas viagens pelas instituições culturais como assessor nunca mais irei recuperar a inocência. Tem-se visto René Martin, de condecoração de Sampaio ao peito – nunca vi gesto simbólico mais significativo dos valores que regulam a nossa actividade cultural – a pôr advogado contra o CCB. Eu bem fazia o esforço pseudo-cosmopolita de pensar, mas a música, a música ela própria, justifica tudo. Outro erro. Não justifica nada. Como se vê: A ideia foi minha! Roubaram-me a ideia! Entre o pólo sublime da música e o pólo da merda do dinheiro envolvido, não há hesitação. A falácia pedagógica faz-me rir.
11. Fiz uma conferência sobre “O esquecimento da geografia” no Collège Internationale de Philosophie em Paris a convite de Maria Filomena Molder em 2006 e versei a questão das novas ontologias da música a partir da existência da gravação e algumas
consequências que daí decorrem para as “minor languages” de que falam Steiner, Deleuze e Foucault. No fim um espectador perguntou-me o seguinte: sendo eu um compositor português como via a importância do fadô para o meu trabalho. Há perguntas para as quais nunca se está preparado. Cometi mais um erro e respondi seriamente à pergunta. Já demasiado tarde, pensei que devia ter respondido que era absolutamente idêntica à importância de Charles Aznavour para Pierre Boulez. Gosto de Aznavour, devo dizer. Portugal, visto de Paris, deve tornar-se um estereótipo muito dificil de compreender nesta dialéctica sem síntese entre os horizontes do sublime, dos túneis e da merda.

António Pinho Vargas, Fevereiro 2007