sábado, 19 de abril de 2014

Porque devemos ler todos os livros de Richard Taruskin?

Porque devemos ler todos os livros de Richard Taruskin a que pudermos deitar mão?

Porque ninguém como ele já há longo tempo contribui para pôr em questão os numerosos mitos que existem sobre a música, o seu presente e a sua história. (mesmo considerando o irritante facto de na sua de resto notável Oxford History, o único nome de um português ser D. João V. É irritante mas, ao mesmo tempo, é instrutivo.)

Do capítulo Et in Arcadia Ego Or, I Didn't Know I Was Such a Pessimist until I Wrote This Thing, originalmente uma comunicação no Seminário de Chicago On the Future, proferida em 1989, publicado pela primeira vez em The Danger of Music, and other anti-utopian essays, (2009), University of California Press.

"Se estão adequadamente preparados para a minha visão do futuro na medida em que se relaciona com o passado devo localizar o presente em relação ao passado. De facto é uma das coisas mais úteis que se pode fazer hoje, porque a narrativa habitual da história da música no século XX - a narrativa académica de qualquer maneira - é um pacote descarado de mentiras, ou na melhor das hipóteses de evasivas, provocada pela adesão a uma bizzara visão da história do século XIX enquanto um 
unívoco progresso linear.
Estou bastante envergonhado por ter de admitir perante a minha presente audiência que a maior parte dos músicos ainda acreditam nesta antiga doutrina mesmo depois das suas medonhas consequências no século XX, mas acreditem que o fazem, especialmente os compositores das vanguardas de ontem, que hoje ocupam os mais conspícuos lugares do poder". (17)

Deve-se ter em consideração a data da conferência: 1989. Hoje, no que respeita sobretudo aos compositores; existe uma relação de forças diversa na maior parte do mundo. 
Mas, por outro lado, creio que "a narrativa académica e o seu pacote descarado de mentiras ou evasivas" ainda ocupa o mesmo lugar nas crenças de uma boa parte das instituições dedicadas ao ensino da música e no imaginário do público em geral.
Há numerosas publicações generalistas, especializadas e salas de aula onde um tal discurso se continua a reproduzir no essencial, aqui e ali, com alguns ajustes, mas ainda mais, aqui e ali, sem nenhum tipo de ajuste. 

António Pinho Vargas

Crenças nas dicotomias inúteis

Acabei de ouvir no programa das sextas-feiras de Francisco Louçã, seis pequenos fragamentos de seis canções destes 40 e tal anos. Ponto prévio sobre a minha opinião. Adoro aquelas músicas. Não são sinfonias, nem sonatas, não são quartetos de cordas, nem peças escritas para piano, mas esse facto não constitui nenhum problema de qualquer espécie, nem assinala nenhum tipo de inferioridade. Essa é uma forma conservadora (e de conservadores) de olhar a música, como se vivessemos no século XVIII e nunca saíssemos do fausto dos palácios. Não vivemos nesse século, os palácios já não existem e, para além disso, não vejo o mundo dessa forma: dividido por uma barreira abissal entre a alta (escrita) e a baixa (oral) cultura nem tenho paciência para quem não percebe isto de qualquer dos lados da dicotomia. Estes termos, muito usados no mundo da língua anglo-saxónica contêm em si com frequência a própria declaração de incompreensão da diversidade das formas artísticas de hoje. Aquelas são canções maravilhosas que se fizeram e cantaram em Portugal, muitas vezes por milhares de pessoas e têm dentro de si universos de sentido tão plenos, tão intensos como qualquer outro dos muitos artefactos humanos chamados música; tenho por eles admiração e amor. Pertencem a outra tradição musical que emergiu no século XX mas esse facto (histórico) não lhes retira nem um milímetro da sua imensa beleza, grandeza, da sua enorme importância.
Há uma dominação global da música pop-rock anglo-americana e há uma dominação mais restrita, no campo da música da tradição europeia escrita, dos produtos provenientes dos países centrais. Trata-se de um dado factual do estado do mundo que pode/deve ser analisado e estudado. Mas - e aqui reside uma diferença que nunca deverá ser esquecida - mesmo desses "lugares de enunciação" de onde provêm esses dois tipos de dispositivos sistémicos de dominação cultural, se produziu e se produz muita música maravilhosa, tal como muita música que não o é, como acontece em todo o lado (na minha opinião).
A crítica (sociológica) destas dominações não é, por isso, uma crítica de grandes obras nem de grandes canções, do passado ou do presente. É uma crítica da sua pretensão de exclusividade ou de superioridade. São coisas muito diferentes, são dois planos de análise. Já o referi muitas vezes mas fá-lo-ei as vezes que forem precisas. Uma diz respeito às relações de poder transnacionais na actual fase. Outra coisa será partir deste facto e misturá-lo com julgamentos de valor decretados à partida, a maior parte das vezes ligados a pretenças identitárias, tanto sociais como ideológicas, tanto reais como imaginárias. Tudo o que é decretado à partida - ou seja, algo que é herdado, que está já estabelecido antes de se pensar - pertence à categoria do pre-conceito.
Aliás dispensa mesmo qualquer pensamento porque releva de crenças aceites e sedimentadas como "naturais", como dados da natureza.
Quer se queira quer não o mundo é diverso e muito mais rico do que pode alcançar o nosso ilusório auto-centramento face ao Outro. Julgo que quem não consegue gostar, nem sequer conhecer, o Outro - seja qual for - dificilmente gostará de si próprio. O lema desta atitude será: "o mundo é aquilo que o meu olhar conhece e pode alcançar".
Infelizmente está bem distribuído transversalmente nas nossas sociedades e gera disputas inúteis.

18.4.2014
APV