quinta-feira, 14 de setembro de 2017

Em torno das designações estilísticas.

Diz o texto que anuncia o concerto Inaugural da Orquestra Metropolitana desta temporada:
"O percurso criativo de Magnus Lindberg é frequentemente demarcado numa linha de evolução que se estende deste a segunda geração das vanguardas modernistas do pós-guerra a uma matriz neoclássica com raízes na primeira metade do século XX. Pelo meio, assinala-se o período em que assimilou as texturas tímbricas e harmónicas da música espectral. Mas o compositor finlandês, nascido em 1958, não se reconhece na simplificação desta leitura: […] a «pergunta original» pode permanecer sempre a mesma." 
Este texto do programa do Concerto da Metropolitana, dia 17 de Setembro de 2017, com Pavel Gomziakov, solista no Concerto nº 2 para Violoncelo, dir. Pedro Amaral chamou a minha atenção. Salvo qual comparação totalmente descabida (Lindberg faz parte da elite dos 'world-class composers' e esse não é o meu caso) foi sobretudo a descrição do seu percurso que me suscitou interesse. 

Porquê? Desde o meu Requiem de 2012 até aos 2 Concertos para Violino e para Viola (2016) foi-se acentuando um caminho, já antes manifesto em Six Portraits of Pain - na verdade também um concerto para Violoncelo - por exemplo, em direcção àquilo que sobre Lindberg é dito: "uma matriz neo-clássica". Neo-clássico foi muito tempo um quase-insulto nos nossos meios pós-50 (pós-60 em Portugal). Pelos vistos deixou de ser e ainda bem. Um insulto nunca é inteligente, então isso é positivo. Abre mundo e não o fecha.  Outra designação que poderia ser usada, seria viragem pós-moderna, dado o facto de haver, desde 1980, vários outros compositores, mesmo da segunda geração das vanguardas do pós-guerra, que tiveram idênticas viragens (por exmplo Ligeti, Penderecki, Gorecki, para não falar de Andriessen com De Staad em 1977).  Tanto um termo como o outro marcam momentos de corte com modernismos e, desse ponto de vista, foram igualmente usados como insulto por modernos (e seus representantes) renitentes à mudança, um grande, um enorme paradoxo em si mesmo.  A pequena e ilustre lista mostra que nem todos o foram.   

Em todo caso aquilo que mais me diz respeito é menos o neo-classicismo de per si, mas a necessidade de reconstituir, no meu trabalho, uma outra ideia da história da música do século XX, e nesse sentido uma superação das anteriores narrativas e das suas categorias definidoras.  Em última análise conhecer o passado a partir da própria música feita, composta, existente e muito menos a partir das anteriores determinações que presidiram à distribuição dos compositores pelos diferentes grupos estilísticos.  Esta distribuição foi feita e impôs-se nos discursos correntes. Nesse sentido faz parte a realidade, esse facto enquanto tal.  No entanto entre o real da descrição antiga e o real das obras compostas encontro a meu ver, uma diferença abissal.  Como cada um de nós decide por si como vê o mundo, o campo e a música ela própria, há longos anos que fui constituindo a minha radical dissidência face às narrativas dominantes. Este facto, só por si, alimenta, quer o que faço, quer a solidão do meu olhar, perante aquilo que é dito e repetido em relação ao passado. 

Nós, vamos pensando. Vamos ouvindo a música dos outros que conhecemos. Vamos vendo como é descrito e recebido o nosso trabalho. 
Lindberg recusa a simplificação, como muitos outros o fizeram muitas vezes no passado e ainda hoje. O vivido é sempre mais complexo (e rico) do que as 3 palavras-estilos-técnicas que surgem no texto. Daí o facto de Lindberg não se reconhecer na descrição e sublinhar-se no texto "a pergunta original" como o factor unificador que sempre existe. As duas primeiras fases de Lindberg, aceitáveis no que respeita à inserção em grupos, embora não determinantes em relação a muitos aspectos da sua música, não se aplicam no meu caso, da mesma forma nem de modo nenhum. O meu percurso foi complexo (as fases não são muito nítidas, nem estáveis) muito inquieto e afastado dos centros excepto quando alguma obra viajou (por isso, como que um percurso 'imaginário' ou apenas local). Devemos ser lúcidos acerca disso, mesmo sabendo que as obras feitas existem do mesmo modo para todos, independentemente do seu destino e do seu alcance geocultural, existem tal como são, em absoluta indiferença em relação a este outro aspecto. 

Identifico-me com a frase sobre "a pergunta original". É verdade, permanece sempre, sendo as várias respostas que variam nas nossas vidas individuais. Dito isto, quero sublinhar este lance discursivo totalmente novo neste campo. Penso, não obstante, que essa música do antigo insulto, a neoclássica de 3 ou 4 compositores - a minha pequena escolha, alargada historicamente para trás (incluo o Schoenberg das 5 Peças para Orquestra e Mahler, ou seja “atonalidade livre” no primeiro e “tonalidade livre” no segundo) parece-me constituir uma constelação mais rica de potencial (para mim) do que grande parte da posterior, mau grado a qualidade que esta possa ter (e tem). Cada um de nós escolhe o seu caminho e traça a sua própria genealogia. Neste sentido quero precisar dois pontos. 

Schoenberg e a passagem da sua fase da atonalidade livre para a fase seguinte - dodecafonismo serial - foi vista e descrita como "uma necessidade histórica". A raiz hegeliana e marxista desta perspectiva salta à evidência. Na minha opinião, já expressa no texto para o CD de Madalena Soveral com a sua Obra Completa para Piano, esta visão é discutível.  Tratou-se certamente de uma opção do compositor sob vários tipos de determinações que nesse texto descrevo parcialmente. Mas essa opção, legítima como é óbvio, foi  interpretada, transformada, lida, por Adorno e os seus seguidores, como obedecendo à referida necessidade, ou seja, uma raiz inevitável da seta do tempo histórico. Sabemos as consequências  desse historicismo na esfera política que, aliás, emprestou muitos dos seus conceitos aos discursos estéticos dessa fase. Na dialéctica entre raízes e opções, inclino-me para a segunda e julgo que os discursos posteriores - sobretudo a 1945 - interpretaram a sua música esplêndida da fase atonal livre à luz da evolução posterior. Não consideraram em nenhum momento que poderia não ter sido desse modo. Outros compositores modernos dessa fase histórica e seguintes, não seguiram essa passagem para o serialismo então dodecafónico. O modernismo, tal como o pós-modernismo e o neo-classicismo foram todos sempre e todos eles designações que ocultaram a extrema diversidade interna de cada "estilo" assim designado.  Nunca foram "estilos" homogéneos ou blocos sem divisões internas entre as várias práticas que os olhares posteriores lhes atribuíram. Este é dos principais problemas dessas narrativas. Cada um desses "estilos" - usemos os termos - teve a sua razão de ser, em cada momento, sendo as diferenças internas resultado das opções individuais dos homens que compuseram nesses diversos tempos e foram agrupados sob esse termo simplificador.   Vejo assim a sua fase atonal como carregando um enorme potencial de futuro, muito para além daquela que foi a sua opção particular. Do mesmo modo, a maravilhosa música de Mahler, recebida com reservas no seu tempo, mesmo se admitindo a enorme estatura do compositor, radica no facto do seu carácter pós-moderno avant la lettre que caracteriza a sua música. Justamente o aspecto que levantava perplexidades aos vienenses, ou seja, a junção numa mesma obra, sublinho, de elementos da grande tradição sinfónica, com elementos de música popular daquela região da Europa, alvo da suspeita que era própria dos melómanos de Viena - suspeição que prosseguiu no tempo até hoje sob outras e variadas formas - torna Mahler uma enorme inspiração para este tempo. 

Deste modo tracei ao longo do tempo uma linha apenas para mim próprio e nem sequer a linha foi estável. A minha linha com 40 ou 50 anos era diversa da que foi sobrando hoje, cada vez mais pequena, mais nuclear.  Tal como os outros mudei. As categorias classificativas dos discursos canónicos não terão grande problema comigo. Conto pouco - e julgo que contamos pouco, em geral. Quer isto dizer uma aceitação? Não me parece. É mais uma constatação de facto na qual embatem todos os argumentos possíveis. O "mundo musical" desta prática, diga isto o que disser, não pode mudar sob pena de se dissolver.

António Pinho Vargas.

sábado, 9 de setembro de 2017

A busca do ponto nuclear da criação musical.

Aquilo que, a meu ver, define hoje uma obra musical, um peça, reside fundamentalmente no seu discurso e não no seu material musical específico. Nem sempre se pôde afirmar este aspecto deste modo. Corresponde ao zeitgeist actual. Não é portanto em torno das dicotomias, nem nas querelas ligadas às designações historicamente atribuídas aos diferentes tipos de material (tonalidade vs atonalidade, modalidade vs cromatismo, ritmo pulsado ou estatismo de planos sonoros, forma contrastantes ou sequências não contrastantes, sendo a melodia infinita, por exemplo, uma designação histórica desse mito, etc. O discurso e a narrativa musical tem modos próprios de se lançar no ar. Não são aquelas determinações - que aliás podem coexistir não apenas no conjunto de obras de um compositor mesmo numa única obra, como Leonard B. Meyer premonitoriamente escreveu em 1963, como podendo vir a ser uma característica dominante no futuro - que atestam a eficácia de um discurso musical.  Na verdade é o discurso, a sucessão de eventos musicais no tempo que lhe atribui, ou não, o seu sentido último. Em qualquer das orientações que estão ligadas às mais diversas correntes actuais é possível encontrar obras dotadas de um discurso claro e uma articulação formal clara. Prefiro dizer deste modo do que usar os termos antes usados preferencialmente, como lógica, coerência, estrutura, etc., uma vez que estes termos, apesar da sua importância, estão por assim dizer gastos pelo uso excessivo durante décadas.  Tal como, aliás, prefiro falar de invenção, imaginação e criatividade. Na realidade não se referem apenas a entidades determinadas, por exemplo, uma estrutura cromática ou tonal, mas podem ser usadas em cada orientação, como “descrição”, ou “actualização”, como se diz na filosofia, do seu modo de ser interno, passível de análise na partitura. Apesar da sua importância, a análise fora-do-tempo, hors-temps, como dizia Xenakis, não é suficiente para desvendar aquilo que é a determinação máxima da música, ou seja, a maneira como os vários elementos constitutivos de uma obra se desenrolam no tempo, como se produzem as ligações entre eles e a sua capacidade de se constituirem como discurso significante. 

Nenhum tipo de material tem o exclusivo deste atributo e, inversamente, é possível encontrá-lo em obras desta ou daquela “estética”. Nesse sentido alguns dos conceitos tardios de Boulez, como o de sinal, proposto no artigo “Le système et l'idée”, incluído no livro Jalons de 1989, apontam de maneira nítida para a audição, para a percepção que o ouvinte capta de momentos da obra, sinal como algo que serve para orientar a audição de momentos particulares de uma obra e que o conduzem durante o seu desenrolar; podem ser usados nos mais diversos tipos de orientações estéticas ou técnicas. Do mesmo modo, nenhuma dessas orientações, nenhum tipo de material, pode, por si só, garantir antecipadamente que uma obra vai ser conseguida. É no próprio fazer dela que isso se verifica ou não. Essa é a nossa contingência eterna: tanto pode acontecer como não. E, a dureza deve ser afirmada: não há nenhum discurso teórico ou poético possível, capaz de legitimar uma ausência de discurso musical propriamente dito. Quando isso se verifica teremos de o admitir e, na realidade, penso que cada um de nós sabe muito bem, no momento do primeiro concerto, se a obra conseguiu existir ou não, se disse o que tinha a dizer ou se ficou àquem desse objectivo.
Esta mesma contingência verifica-se em todas as artes e, desse modo, cada artista tende a ser solitário no seu fazer e nas suas convicções. Faz de uma certa maneira e vive com isso.  

No entanto a noção de discurso musical pode considerar-se mesmo nas obras mais lisas, imóveis, estáticas, aparentemente “sem discurso”. Nestes casos podem dar-se ao ouvinte enquanto objecto quase-mágico, constituído pela permanência no tempo de uma superfície sonora aparentemente imóvel, coisa que o desenrolar temporal obrigatoriamente nega e contradiz. Passa a ser a afirmação-da-negação do discurso clássico - no sentido lato - e, desse modo, oferece-se à audição enquanto permanência que propõe um modo de audição próximo de hipnótico. Geralmente trata-se de uma aparência: na verdade há micro-eventos, no interior desse tipo de superfícies. O “mesmo” prosseguindo no tempo, 5 segundos, 1 minuto, ou 5 minutos depois, já não é igual a si próprio, torna-se outro, dado o facto de ter ocorrido temporalmente mais tarde e, como tal, existe já sobre a memória de si próprio momentos antes (o livro de Husserl Lições para uma fenomenologia da consciência ínterna do tempo teoriza justamente essa acumulação de realidade e memória do mesmo, antes passado, dando como exemplo a sucessão melódica). A música é uma arte do tempo, a essência da música e mesmo a sua condição de possibilidade é o tempo. Sem tempo, esse tempo peculiar de som que se propaga no espaço, não há música (nem vida). Não é deste modo estático que trabalho mas reconheço-o como uma possibilidade. Alguns compositores do passado mais recente e ainda do presente conseguem fazê-lo de forma interessante. Dependerá da qualidade dos materiais e do trabalho sobre eles e, nestes casos, pode ser um trabalho quase inaudível mas é tornado audível na sua sequência temporal alargada. De outro modo, um material complexo quando apresentado e sobreposto a si próprio de forma transformada e persistente, pode igualmente constituir-se como imobilidade aparente. A percepção, não conseguindo descodificar os elementos, torna-os idênticos por acumulação. Aqui reside a principal questão de algumas correntes, mas, deve-se considerar necessariamente que há obras bem conseguidas compostas nesses pressupostos. Isso deriva do próprio fazer das obras concretas, específicas, esta e não aquela, e é sempre nelas, em cada uma, que se deposita um sentido, uma razão de ser. Não são portanto os pressupostos técnicos nem as opções desta ou daquela corrente que determinam os resultados de uma obra. Ela é um microcosmos, “um mundo” que se conseguiu erguer.

A maior parte das querelas do mundo da criação musical verificam-se em torno das várias crenças e convicções. Elas estabeleceram-se historicamente em diversos momentos. É portanto sobre estas opções a priori, que se debatem, por vezes furiosamente, as diversas posições. Sendo, por um lado, natural e compreensível, dadas as regras que regulam os campos culturais, parecem-me em grande parte inúteis. Têm como objecto em geral os pressupostos da linguagem e o tipo de materiais - tornados deste modo autênticas divisões do mundo - quando na verdade, são as obras elas próprias, compostas de um ou outro modo, que irão existir enquanto tal e será nelas que reside o seu ser-arte musical. A energia que se consumiu em torno dessas questões, especialmente no passado recente, seria melhor aplicada no fazer-da-obra e no questionar  incessante que é inerente ao acto de compor. Nenhuma obra existe sem que um pensamento se tenha empenhado e aplicado no seu fazer. Se não há pensamento musical e pensamento no sentido mais vasto dificilmente haverá obra. Há uma diferença entre pensamento e pre-concepções. Uma ideia de uma obra constitui-se geralmente de forma vaga, partindo dos mais diversos pretextos. No seu fazer a ideia concretiza-se em objectos musicais reais e sobre eles dirige-se a reflexão, a interrogação, o questionamento. É esse processo complexo que constituiu a composição, que a realiza, ou a actualiza-em-obra. Não há como fugir deste processo: é o ponto crucial do acto criativo e nunca é possível contorná-lo, seja de que forma for. Neste momento deste pequeno texto não é necessário dizer que isso se verifica sempre, seja qual for a corrente em questão e sejam quais forem os pressupostos ou as convicções iniciais. O resto - decisivo - é a contingência do compor, o risco inerente ao lançar uma coisa no mundo. É este o ponto nuclear da música, da arte e das artes. Na inevitável contingência, procede-se à busca incessante desse núcleo.

domingo, 3 de setembro de 2017

Considerações sobre infâmias, resgates e infinitos.

 Considerações sobre infâmias, resgates e infinitos.

1. Na história dos escritos e ditos sobre música durante todo século XX e até hoje há numerosos escritos infames. Adorno vem à cabeça das várias infâmias publicadas. Philippe Lacoue-Labarthe classifica de infames os seus escritos sobre jazz (dos anos 30 e 40) no  livro que reune os seus escritos sobre música. Schoenberg - aquele que era o seu modelo predilecto considerando especialmente a sua fase da atonalidade livre - ele próprio, comentou a forma como Adorno escreveu sobre Stravinsky em termos algo semlhantes: "claro que eu não gosto dele (Stravinsky) mas em todo o caso não se pode escrever daquela maneira [como Adorno o fez]. Na verdade nunca gostei dele". (cit. no livro de Stuckenschmidt, Schoenberg and his Music). 
Apenas sobre compositores alemães Adorno escreve sem o espectro da infâmia por perto. Nos livros tardios sobre Mahler e Berg escreve até de forma produtiva ainda hoje na minha opinião. Melhor dito, seria produtiva se o seu pensamento anterior não se tivesse de certa forma sedimentado no espírito dos artistas - mesmo que nunca o tenham lido - ao contrário do seu destino pouco feliz nas universidades (uma ideia justa de Albrecht Wellmer). Na verdade Adorno, em especial no livro sobre Mahler, coloca em evidencia uma outra perspectiva, diversa da sua anterior fixação no conceito de material (avançado em Schonberg e regressivo em Stravinsky) a favor do que qualifica como dinamismo articulado, fluxos puros e alguns outros conceitos. 

Nesta passagem essa nova posição é clara: "Mahler activa do interior a tonalidade por pura necessidade de expressão, ao ponto que ela [a tonalidade] abraça, fala uma vez mais como se ela fosse imediata […] fazendo-a falar, Mahler provoca na linguagem de segunda natureza uma reversão qualitativa...". Noutro ponto introduz o conceito de carácteres [caractères]: "Mahler enriqueceu a composição com uma dimensão que se viu recalcada como ele próprio o foi, e que aparece hoje cada vez mais como a própria condição [la condition même] da possibilidade de toda a música. É a dimensão dos carácteres, cuja singularidade  desaparece tanto na unidade indiferenciada da linguagem integral actual. […] Esta caracterização drástica [uma transição, um epílogo, um abgesang] graças ao qual cada detalhe, em virtude da função e do sentido que tem no seio do todo, torna-se aquilo que é [devient ce qu'il est], permite-lhe tornar-se mais do que aquilo que é. Abre-se assim a uma totalidade que se cristaliza ela própria a partir de si, e deixa de ser um princípio imposto de fora aos carácteres". 

Claro que Adorno se exprime de forma circular e, muitas vezes, abstrusa, dificil de descortinar (tal como a do seu mestre Hegel). No entanto temos de ler estas passagens  no quadro da sua prosa complexa e no quadro do seu tempo particular. A seguinte resume talvez melhor ainda a sua posição neste livro de 1960: "o movimento do todo, para se impor, deve relativizar o particular; mas não é necessário que os detalhes se dobrem à sua vontade de maneira demasiado conciliante, se eles não querem perder a caracterização que só os qualifica na sua relação com o todo. A façanha [l'exploit] mahleriana é ter sabido dominar [maîtriser] esta aporia".

É uma evidência que Adorno não poderia, julgo, abandonar completamente a sua concepção do material musical, o que explica o uso termo "aporia" aqui empregue. As suas ideias tinham sido expressas, desde sempre, de modo nem sempre claro e muitas vezes contraditório. Mas a música de Mahler obriga-o, nesta fase da sua vida (morreu em 1969), a reinventar os seus conceitos antigos, a acrescentar-lhes novos, de modo a declarar "a façanha de Mahler" juntamente com uma nova interpretação do que antes tinha sido apenas qualificado de regressivo, em suma, a tonalidade. Para Adorno, através dos "carácteres" atrás referidos, Mahler consegue usar a tonalidade de um modo particular que tal lance adorniano expõe: "a estrutura de conjunto permanece sempre aparente, mas em todo o lado [partout] infiltram-se as astúcias, as proporções harmónicas como as das sonoridades maiores e menores, invertem-se em relação à primeira exposição do tema [no lied Der Schildwache Nachtlied] como se este fosse abandonado aos caprichos da improvisação. […] Mas no seio desta identidade ao mesmo tempo vaga e pregnante, o conteúdo musical concreto, a sucessão dos intervalos sobretudo, permanece variável. […] os conjuntos mais vastos encontram-se retomados com esta vaga da qual a memória musical faz, ela própria, muitas vezes a experiência. É isto o que permite dar-lhes uma nova nuance, uma nova luminosidade, um novo carácter enfim. […] Uma tal largueza [largesse] no tratamento do material... legitima tecnicamente a extensão das sinfonias épicas de Mahler". [131, 132]

Deste modo uma matéria sonora oferece "le bonheur de l'art s'irradie dans l'apparition sensible".  [Teoria Estética, 188]. Adorno revela-se nestas passagens um outro pensador, menos conhecido, menos lido e, sobretudo, menos citado.

As vanguardas, tal como os contemporâneos de Mahler, olhavam com desconfiança a sua música, antes da extraordinária Sinfonia de Berio de 1968 a ter, de alguma maneira, legitimado no interior do restrito sub-campo contemporâneo. De certo modo, depois do livro escrito na prosa no fio da navalha característica de Adorno, a Sinfonia de Berio constituiu o segundo capítulo que permitiu um outro olhar.  Um resgate que então foi necessário, de tal modo que, hoje, até nem somos capazes de o imaginar, de tal modo absurda nos parece ter sido essa desconfiança. Creio, no entanto, que o papel maior coube aos maestros como Bruno Walter, Willem Mengelberg, Leonard Bernstein, entre outros, que sempre lhe defenderam a música apresentando-a em concertos: esse é um momento de verdade sem o qual, nenhum livro poderia bastar.




2. Shostakovich foi talvez o compositor vítima dos maiores processos infames de duas ordens diversas. Por um lado, na sua própria vida na União Soviética, com os momentos mais difíceis da infâmia opressiva em 1936 e em 1946-7 e, por outro lado, na sua recepção pelas vanguardas europeias após 1950. Os momentos no interior da União Soviética estão bem documentados e, de certo modo, são divulgados com pouca reflexão associada em torno de alguns aspectos que configuraram uma mitologia discursiva com base naquilo que em francês se diz "anecdotes" - palavra com um sentido muito diferente da sua tradução à letra: um conjunto de histórias exemplares que existem do mesmo modo sobre outros compositores, como é o caso de Beethoven, por exemplo. O outro lado da infâmia  é muito menos considerado e mesmo conhecido. Richard Taruskin no seu artigo "When Serious Music Mattered" publicado no livro "On Russian Music" dá-nos a perspectiva mais profunda que conheço deste segundo aspecto. Na realidade com a excepção de um conjunto de músicos ocidentais, em especial, maestros, que, desde o início tocaram e defenderam a sua música, todo um outro enorme conjunto de compositores e críticos ocidentais se manifestou muitas vezes e de várias formas infames. Uma dessas formas era a pura e simples não-consideração da sua existência. A questão é simples: de acordo com a ideologia das vanguardas musicais, qualquer compositor suspeito de neo-classicismo, era imediatamente relegado para o baú das antiguidades inúteis. A sua música foi objecto de infâmias sucessivas dessa ordem e continua a ser, enquanto, ao mesmo tempo, no cânone do repertório - ou seja, o as obras que mais vezes estão presentes nas salas de concertos do mundo, muito diverso do cânone do ensino da composição ou dos festivais de música contemporânea, amplamente subsidiários da ideologia de Darmstadt pela via da autoridade musical e discursiva de Pierre Boulez, o homem que melhor transportou, defendeu e instituicionalizou aquela ideologia (ver Georgina Born, (1995) Rationalizing culture: IRCAM, Boulez and the institutionalization of the avant-garde, University of California Press).

Distingo a ideologia hegemónica desse grupo de homens, das obras que efectivamente foram compostas sob os seus princípios; caso contrário, estaria a aplicar a mesma redução ao estilo, a mesma redução à ideia de material musical (derivada de Adorno) e à ideia de futuro que esse grupo transportava. Essa redução simplificadora é muito difícil de contrariar dado ter-se tornado uma espécie de segunda natureza na forma de ouvir música (e escrever sobre música). É necessário ultrapassar essa dicotomia criada por eles próprios para poder considerar a sua própria música e resgatar as obras-em-si das formas de poder que se conseguiram expandir historicamente num dado período.

Devo acrescentar que conhecer a música de Shostakovich e saber aquilo que sobre ela era dito e escrito nessas décadas é das coisas que mais me atormentaram nos últimos 20 anos. Tive de reconquistar para mim próprio a música de Shostakovich e, talvez em menor grau, a de Britten - igualmente proscrito nesses meios nos países continentais da Europa - e esse processo não foi sem problemas nem tensões. Tratava-se simplesmente de ouvir as obras condenadas à priori. Um cânone cultural constitui-se por inclusões e exclusões, como é geralmente aceite. Uma vez triunfante, torna-se "uma verdade" até se conseguir desmontar uma série de aspectos: os seus pressupostos de base, a sua filosofia da história inerente e a própria vertente institucional de vários aspectos que se lhe foram associando. Nesse sentido, considerando aquilo que me era dito - julgo ter sido sempre um bom ouvinte e um leitor compulsivo - e, portanto também aquilo que fui lendo sobre os vários assuntos que esta matéria abrange, o facto é que constituir uma dissidência, uma outra visão do que é o mundo musical e do que é a própria composição, se não mesmo a música, foi um longo processo e julgo que será sempre. Uma das suas vertentes está perto da lentidão do processo de individuação de cada um.

Acrescento uma "petite histoire" (para continuar na língua principal desse argumentário). Há cerca de 20 anos comprei os dois livros dos Prelúdios e Fugas de Shostakovich (1951). Ao meu lado estava um antigo professor meu, então já colega (homem que prezo ainda apesar do "vasto mundo" que nos divide; é importante não confundir estes planos). Quando viu o que estava a comprar ergueu-se um pouco mais direito e disse-me, firme: 
"Ó homem, você enlouqueceu?" Respondi-lhe com grande banalidade: "olhe que é uma maravilha..." e coisas desse tipo completamente inútil face à fixidez do preconceito. 
O que está condensado naquele breve momento representa várias coisas, a saber, o antigo cânone daquela área, a sua enorme intolerância face a qualquer diferente - uma "verdade" não admite contradição - e a minha dissidência ainda em processo gradual de afirmação. Nada é fácil na criação artística e nos seus momentos de ruptura.

O resgate da música de Shostakovich, depois de Mahler, talvez o compositor com mais Sinfonias tocadas pelas orquestras do mundo (este é um facto que, por si só, permite avaliar o destino dos vários legados, num dado momento, este em que escrevo; à parte isso não assegura, nem prova mais do que
apenas isso mesmo), o resgate, dizia, teve um agente principal: a sua própria música, a qualidade e a força da própria música. As infâmias, tal como as hegemonias, têm um certo período de validade. Operam no todo social e variam com ele. Passado um prazo, a música expõe-se a si própria com os seus próprios meios e, por vezes, consegue derrubar todas as infâmias anteriores.

3.

Penderecki diz numa entrevista que existe no Youtube, duas coisas com muito interesse. A primeira diz respeito às suas relações com Lutoslawski e Gorecki. Afirma: "eramos amigos claro, mas raramente nos encontrávamos. Na realidade, como muitos disseram antes, ser compositor é fundamentalmente estar só, viver uma solidão". Verdadeiro. Em segundo lugar, a propósito da sua segunda fase como compositor refere a importância que tinha tido para ele o facto de ter assistido  em Berlim a muitos concertos dirigidos por Karajan com música de Bruckner em Berlim numa fase em que lá ensinou. Deste modo podemos inferir que, mesmo sem atingir o grau de crise como foi o caso de Ligeti após Le Grand Macabre - quatro anos sem concluir nenhuma obra - de várias maneiras e com vários compositores se verificou um corte, uma nova atitude neste período histórico. As antigas convicções deram lugar a novas interrogações e a novas formas de conceber a música e o acto de compor. Alguns falaram e escreveram muito sobre isso. Outros nem tanto. 

O essencial reside no tempo. Decretar, seja em que momento for, "um fim da história", um ponto de chegada a partir do qual o processo histórico teria terminado, na política, na economia e nas artes e em tudo o resto, é um erro tremendo e muitas vezes repetido ao longo da histórias das várias artes). Se o tempo não pára e a vida prossegue sob novas determinações, seria muito estranho que uma arte se congelasse por auto-mutilação de futuros possíveis, numa espécie de contradição em relação à própria essência da arte e da vida. Na sua solidão irredutível cada um procura o seu futuro enquanto pode e vive. Traça a sua genealogia, a suas relações de cumplicidade com outros e cria-se a si mesmo quando tem sorte. Fá-lo sempre na dúvida que resulta do facto elementar de o futuro não estar escrito em lado nenhum e ser apenas o tempo e o seu desenrolar, vivido por cada um à sua maneira - a solidão referida - que fornece respostas, mudanças, crises e fases (ou não fornece). Apenas a morte põe um fim efectivo a alguma coisa dos humanos, na sua subjectividade individual irredutível. Mesmo hegemonias provisórias, com a grande força social de estratificação, de imobilismo, de rotina adquirida, têm de ceder ao real, à diferença, mais tarde ou mais cedo. 

4. 

Não digo nem escrevo nada sobre a minha música. Porquê? Porque estou (finalmente!) persuadido que não iria ter nenhuma utilidade. A música é uma coisa, um artefacto humano particular, chamado obra de arte, dotado talvez de infinito intrínseco. Não estou completamente certo disso embora possa parecer evidente, em muitos casos do passado remoto ou menos remoto. 

Uma vez lançada no mundo nada do que (se) possa dizer ou escrever altera seja o que for em relação ao que cada obra é, especialmente se for o próprio a dizê-lo. Afirmada esta diferença irredutível e propriamente ontológica (o ser da coisa) entre a obra e qualquer discurso sobre ela, não julgo necessário
acrescentar nada, depois do momento inicial que muitas vezes é também o momento final, como sabemos. Nenhuma das determinações de carácter sociológico sobre o lugar que ela ocupa no meu país, sobre o lugar que ela ocupa no mundo - em suma idêntico ao dos meus antecessores com pequenas variantes  passíveis de compreensão histórica específica em cada caso - nada de tudo isso se altera se eu - o compositor solitário como foi dito por Penderecki -  disser ou não disser. Aliás já disse e já escrevi.
Dela, dessa música, a que me é mais cara - nem toda me é cara da mesma maneira, como é óbvio - existe em gravações nas plataformas digitais. Feito esse esforço (grande, persistente) tudo o resto me é estranho, alheio, muito para além do meu campo de acção enquanto compositor. Fiz o meu trabalho e pode ser ouvido em grande parte. O que está na música, estará sempre, nem que desapareça totalmente das salas onde momentaneamente aconteceu. Ficará como possibilidade infinita, como acontece com todos os meus ilustres antecessores e sucessores.

(Peço que me entendam: a possibilidade de infinito aplica-se a todas as obras que já foram feitas e às que serão feitas por todos, nos futuros insondáveis, enquanto possibilidade contingente. Se há quem já conheça o futuro não é certamente o meu caso. A isso chama-se contingência, tanto no tempo, como nos vários espaços, os vários lugares das múltiplas culturas. Gostaria de dizer culturas infinitas. Mas infelizmente sei que as culturas podem ter um fim. Muitas já desapareceram nos séculos XX e XXI, juntamente com as línguas em que se exprimiam, como George Steiner nos ensinou.)

Alea jacta est.
  

António Pinho Vargas, Setembro  de 2017