segunda-feira, 22 de maio de 2017

Sobre a análise musical (partindo de Bergson e Deleuze)

1. A análise musical é certamente muito importante na aprendizagem tanto para músicos / intérpretes como para compositores. No entanto, será talvez menos importante do que nos parecia nos anos 1970 e 80.
Quero quero dizer? Naquele período da minha aprendizagem era vista como absolutamente central na sequência da hegemonia serial e pós-serial. Analisar era então reconstituir a série e os seus derivados, mesmo à custa de menor atenção a outros factores deveras importantes. Rapidamente se concluiu essa limitação. Durante décadas fui lendo numerosos livros e numerosos artigos com análises de música serial ou pós-serial, de música moderna não redutível a essas correntes (de Stravinsky, de Bartok e Debussy) e apesar da notória utilidade das descobertas que permitiam ficava no meu espírito insatisfeito a vaga sensação de que era necessário ir mais além. Ou, dito de outra forma, que a música não era redutível a uma qualquer formalização dos seus elementos. Não por acaso a esse tipo de análise designa-se hoje por formalista. Coexiste, no entanto, com outros métodos menos dependentes desse pressuposto e, por isso, mais ricos.

Mesmo já numa fase posterior o contacto com a análise schenkeriana, de certo modo, recolocava sob o olhar de quem analisa os vários níveis de discurso musical que, nos primeiros tempos da primazia serial estavam para além do que se pretendia obter. É um facto que a análise schenkeriana tem como objecto principalmente para a música tonal. Em todo o caso, nos seus 3 níveis adequados, desloca a visão tradicional vertical - sequências de acordes e as suas funções tonais - para uma busca que introduz maior consideração pela linha fundamental - Urlinea - ou seja, para uma dimensão horizontal, sem deixar de considerar a harmonia funcional própria do sistema tonal nas suas várias fases.

Actualmente há uma tendência para contrariar a divisão entre vários sistemas ou várias teorias de análise musical e avançar usando todos os sistemas que se revelem adequados, úteis, instrutivos. Há também, no entanto, a adesão exclusiva a um único sistema ou teoria, com perda patente de outras perspectivas que poderiam ser igualmente usadas. Tudo depende da opção de cada professor ou de cada publicação.

2. Face a este panorama não terei nada a acrescentar que não seja de outra ordem. Pode ser formulado enquanto pergunta. De que modo a análise musical pode (ou não) captar e apreender o discurso musical, em tudo aquilo que não é redutível a uma formalização ou a uma mera descrição por outros meios daquilo que já existe na obra?"
Esta última observação é usada por Boulez nas suas últimas Leçons de Musique, nas quais se interroga sobre os limites das descrições possíveis. Nesta direcção uma leitura de Deleuze sobre Bergson, nas suas aulas de Vincennes, vem talvez enriquecer a questão e os seus modos de aproximação.

3. Afirma Deleuze que aquilo que nos é dado são "mélanges", misturas, tudo são mistos. "Então o filósofo analisa. Mas o que quer dizer analisar para Bergson? Transforma completamente aquilo que as pessoas dizem ser analizar. Analisar vai ser procurar o puro. Analisar será então analisar o misto, procurar o quê? Os elementos puros? Não, dirá logo Bergson: o que é puro nunca são os elementos. As partes de uma "mélange" nunca são menos misturadas que a mistura ela própria. Não há elemento puro.
O que é puro são as tendências. A única coisa que pode ser pura, é uma tendência que atravessa a coisa. Analisar a coisa é desbloquear as tendências puras que a atravessam, que a depositam. Bergson chama-lhe intuição" [como método filosófico].
Aquilo que mais importa será referido a propósito da relação entre o movimento e a habitual relação entre o movimento e o espaço percorrido.  Para Bergson trata-se de um erro. O movimento é irredutível ao espaço percorrido porque é o acto de percorrer, uma entidade não redutível nem ao espaço percorrido nem ao tempo abstracto medido.
Vem então a frase essencial: "Bergson diz-nos: é que o movimento faz-se sempre entre duas posições. Faz-se sempre no intervalo. Seja qual for o corte imóvel mais próximo entre duas posições por mais próximas que estejam. haverá sempre um intervalo por pequeno que seja. E o movimento far-se-á sempre no intervalo. Far-se-á sempre entre dois cortes. Não é multiplicando os cortes que se conseguirá reconstituir o movimento".

Aqui reside o ponto essencial que me permite transportar o conceito para a música e a análise musical. 

4. Na realidade a motivação remonta a longo tempo: porque é que me parecia sempre que a mais brilhante que pudesse ser das análises ficava aquém da obra? Esta questão remete para o discurso musical no seu todo e não apenas nas suas partes ou secções constitutivas.
Cada obra musical contém em si um discurso, um dizer, um ser-música, que na análise é confrontado com um determinado método analítico. Este método pode esclarecer-nos sobre a sua forma, sobre os carácter dos seus elementos de todo o tipo (harmónicos, melódicos, rítmicos, sonoros, técnicos, enfim, tudo o que possa imaginar) que são certamente importantes para quem quer estudar a obra em questão. Não há dúvidas sobre isso. No entanto, aquele seu-ser-obra, que se concretiza em si mesmo como que escapa parcialmente às abordagens analíticas. Parafraseando Boulez, quanto mais analisamos uma obra  mais o seu segredo  nos parece cada vez mais distante. Não pretendo sacralizar um tal segredo. O facto é que, na análise, estamos, não apenas num registo discursivo que necessariamente não é música, como, além disso, fora do tempo. Algo próximo daquilo que Bergson/Deleuze referem como cortes imóveis disponíveis para o estudo. Mas num caso, o movimento bergsoniano, e noutro caso, os irredutíveis movimentos da obra-enquanto-obra, ou seja, enquanto realidade sonora existindo no desenrolar temporal - residindo a sua essência em algo que apenas é captável em acto-de-existir-enquanto-música constitui-se como uma entidade que, por mais que possamos dividir em partes em arquétipos formais, em situações musicais, em eventos sonoros determinados e classificáveis, se realiza no entanto apenas em si mesmo enquanto música real, em acto de ser-música.  

Esta sua especificidade não anula a sua análise, não a torna inútil. Tal como um texto de análise de um poema nunca poderá substituir o poema em si mesmo. A análise simplesmente reduz o seu âmbito a algo de parcial, instrutivo sem dúvida, mas parcial. Ao deslocar-se para o registo discursivo, ao retirar-se do tempo enquanto partitura na qual podemos operar cortes e classificá-los, do próprio ponto de vista ontológico está noutro plano que não o de ser-música.  Quando Adorno, sempre capaz de escrever os maiores disparates, afirmou que a essência da obra residia na partitura, que nem era preciso tocá-la, muitas vezes mal, bastando a leitura da partitura pelo filósofo dotado da sua superior audição interna (ele próprio, Adorno), mostrou-nos que, apesar de sua aparente ligação à música como pensador e comentador, na realidade nunca soube o que ela era-no-seu-ser.  Se isto permite compreender a enorme quantidade de erros ditos e escritos pelo alemão, não nos serve para mais nada. A música era e é simplesmente outra coisa e é ela que nos dá a sua maior magia.

PS: este texto tem por objecto a análise musical vista do ponto de vista de um compositor de hoje. Nunca leccionei essa disciplina por razões várias. Outros colegas estavam mais vocacionados, em certos casos muito mais vocacionados, para essa disciplina. Conheço a problemática da minha aprendizagem, do meu estudo e daquilo que, posteriormente, em cada momento quis analisar por e para mim próprio. Em certas aulas de composição ocorreu, por vezes, fazer um tipo de análise parcial, local ou específica - a qual Boulez se refere dizendo poder ser "fulgurante" (e não em busca do segredo global já referido) - em torno de problemas composicionais determinados em obras que escolhia em função das necessidades dos alunos-compositores. Este texto denota essa relativa distanciação que se produziu ao longo do tempo sem ter sido propriamente planeada. De outro modo, o facto de ter tocado jazz tradicional entre 1976 e 1982, sobretudo, implicava desde logo uma análise funcional imediata. Os músicos de jazz com os seus signos cifrados próprios, por exemplo, G-7 - C7b9 - F- eram, pela própria natureza da escrita e daquela prática musical, forçosamente analisados nesse plano harmónico e escalar, sob pena de não se poder, pura e simplesmente, tocar.

António Pinho Vargas, Maio 2017.

sábado, 13 de maio de 2017

Retrato do artista enquanto trabalhador

"O que é que pode um corpo?"
Espinosa


Escrevo este texto para os leitores que o quiserem ler, naturalmente, mas, antes de mais, para mim próprio. Precisei de o fazer. 

Retrato do artista enquanto trabalhador deriva do título de um livro de Pierre-Michel Menger (aliás, autor citado no meu livro Música e Poder num ponto crucial: a criação do sub-campo da música contemporânea - actualmente em rápida e imprevisível reconfiguração) e, além disso, o título corresponde à forma como vejo a minha actividade criadora: como um trabalho. Esse trabalho consiste em produzir obras musicais. A interrogação que percorre o livro de Menger citado é a seguinte: o que é que conduz as pessoas para uma profissão artística sabendo-se antecipadamente que essa profissão, enquanto tal, é instável, insegura, contingente e desgastante? O seu livro ensaia uma série de respostas a esta pergunta, sendo que, a meu ver, se pode acrescentar uma razão, talvez fora de moda neste mundo utilitário e imediatista, mas que parece indispensável: uma necessidade, uma verdadeira pulsão criativa que opera no recôndito mais profundo de cada ser que a escolhe.

Dito isto proponho-me aqui analisar duas coisas: 1) o meu trabalho enquanto criador de obras-de-arte musical (coisas lançadas no mundo quer ele note quer não note) e 2) o cansaço que sinto hoje. Claro que a idade conta -
"O que é que pode um corpo?" - mas a questão só pode ser compreendido pela quantidade de trabalho produzido, tal como qualquer trabalhador do século XIX o sentia muito bem quando, ao fim do dia, regressava a casa depois das 12 horas de trabalho nas fábricas em condições penosas, ou, hoje - sob o regime mundial do trabalho flexível exigido pelo capitalismo neoliberal que comanda a economia-mundo - como regressa a casa depois de submetido às exigências que o obrigam a se reinventar, em curtos espaços de tempo, para desempenhar múltiplas funções, a regra número um do tipo de flexibilidade laboral exigida. O trabalho é específico de cada época e de cada profissão. Mas é sempre um trabalho.

Devo portanto pensar sobre aquilo que fiz nos últimos 10 anos. Tentarei seleccionar aquilo que me parece mais importante da minha perspectiva, para não escrever tudo. Fiz de facto muitas "coisas-obras". Assinalo a negrito as obras e livros gravadas/editadas disponíveis.

2007 - gravei em 3 dias de Dezembro os discos duplos Solo (2008) e Solo II (2009) e fiz numerosos concertos até 2013, mas não os posso referir a todos, uns 25 ou 35, não estou certo. 
2008 - ópera Outro Fim.
         - Suite para Violoncelo Solo
         - Quarteto de Cordas nº2 Movimentos do Subsolo
         - 1ª edição de Cinco Conferências: especulações críticas (realizadas em 2005).

2009 - An Impossible Task (3.3.3.1 harps.)
         - Trípico para Quarteto de Cordas e Orquestra
         - Concerto no IST - improvisação livre - CD Improvisações  

2010 - Tese de Doutoramento: Música e Poder (Almedina, 2012)
         - One minute to go (Sond'art Ensemble)
         - Quasi una Sonata (violino e piano)
         - Quatro  Novos Fragmentos (versão para flauta e piano).

2011 - Árias de Ópera para Tuba e Percussão (Drumming)
         - No Art - quatro estudos para violino solo. 
         - Onze Cartas para 3 narradores, orquestra sinfónica.
         - Estudo para Vibrafone - Políticas da Amizade.

2012 - Quarteto de Cordas nº3. 
         - Overtures and Closures para Orquestra
         - Requiem para Coro e Orquestra. 

2013 - Magnificat para Coro e Orquestra.
         - Antiques para Viola e Violoncelo (2010-2013)
        

2014 - De Profundis para Coro a Capella.
         - Quadros (de arte moderna) para orquestra.
         - Les Octaves Sonata para 2 pianos e percussão (Drumming).
         - Three Political Events para orquestra de sopros. 

2015 - The Composer para Coro a capella. 

2016 - Concerto para Violino e Orquestra. 
         - Concerto para Viola e Orquestra. 

2017 - 3 Pontos no Espaço para 6 orgãos
         - Variações (...memórias...) para piano.

2018 - Quarteto de Cordas nº 4 (quase terminado).

Pelo meio sairam os CDs (para além dos 3 já referidos): 
    Requiem e Judas (Naxos) 2014
    Magnificat - De Profundis (Warner) 2017
    Concerto para Violino (mpmp) 2017
e foram ainda reeditados
    Os Dias Levantados, (Naxos digital) 2015
    Verses and Nocturnes (Naxos digital) 2015
    Monodia (Warner digital) 2015
e ainda o CD da Orquestra de Jazz do Hot Club com alguma da minha música de jazz com os seus arranjos, estando prevista uma nova gravação de Six Portraits of Pain em 2018.    

Refiri apenas as obras estreadas e não os concertos com outras obras minhas (foram ainda alguns outros) .

Esta lista permite-me concluir que, na realidade,
foi realizado nesta década muito trabalho, muito trabalho mesmo. Poderão perguntar-me se todas as obras são boas ou se têm igual importância na sua duração ou valor simbólico (para mim). Não sei se todas são boas mas direi que talvez não. A arte é contingente como sempre foi. Apenas os historiadores agrupam e reagrupam o passado longínquo como totalidade, aquilo que foi apenas feito de cada vez, visto enquanto totalidade retrospectiva. Penso que estão em diferentes patamares de qualidade, tal como de duração, dimensão e desígnio, como é normal com todos os compositores. Em todo o caso, boas ou más, têm o mesmo destino. São muito pouco tocadas em geral ou mesmo não tocadas. Quanto maior for o dispositivo (Orquestra, Coro, Ópera, etc.) menos provável acontece e acontecerá. Destino muito comum, como sabemos. Mas uma boa parte delas fazem parte daquilo a que se liga o meu afecto mais profundo e a minha recordação mais comovida do seu momento inicial. Sobre o problema da vida musical em geral já escrevi um livro e não irei continuar reclamar contra a evidência: esta música "não se inscreve" (Gil) e o seu lugar está ocupado há muito tempo.

Escrevi este texto para mim próprio, como disse. Precisava de colocar no papel uma razão de ser, uma mera interpretação/verificação simples do meu actual cansaço enquanto artista trabalhador, dotado de um corpo no tempo.
Mas, feito isso, não avanço de modo nenhum para nenhuma psicanálise mítica ou mística, nem sequer para nenhuma opinião nem, ainda menos, para qualquer previsão. Quando se usa a expressão "O futuro a Deus pertence", diz-se, em última análise, através da metáfora religiosa, simplesmente que não se sabe.
Prever não era aqui o objectivo. É antes poder dizer: "Foi assim, um conjunto de factos reais".

António Pinho Vargas, Maio 2017