segunda-feira, 27 de junho de 2011

Lema futuro para programadores culturais, críticos e políticos-culturais

"Será preciso que alguém me diga - de um outro país qualquer - que o Fernando Pessoa é genial para que eu acredite nisso? É que eu já sei, já sabia desde 1965. Cada um de nós devia ser capaz de acreditar na sua própria capacidade de efectuar julgamentos de valor autónomos, sem a necessidade da caução exterior" (extraído de uma intervenção num debate no Facebook).

Um exemplo: "agora que se fala tanto da empresas que exportam, é quase um escândalo que muitas instituições culturais quase só apresentem artistas cuja maior qualidade é não serem portugueses. E fazem-no com satisfação dos pseudo cosmopolitas sendo o estado a pagar. Se fossem eles pensariam duas vezes. Só em viagens vai uma pipa de massa. Não defendo que não viesse ninguém de lado nenhum (Salazar est mort, felizmente) mas - para dar um exemplo que não me afecta - toda a gente diz que agora, nos últimos anos, surgiram em Portugal muitos músicos de jazz de grande qualidade. Mas olha-se para o programa do Jazz em Agosto e de bastantes outros festivais de jazz cá organizados e não aparece nem um.
Ah, há um: o programador que se esqueceu que no tempo da Dr. Madalena Perdigão havia sempre pelo menos um concerto de um grupo português.
Conclusão: Rui Neves há muitos; Madalenas Perdigão há poucas. " (extraído de uma intervenção no mesmo debate).

Este seria o exemplo a seguir. O outro é o exemplo a evitar.

Confirmação momentânea

Uma frase que confirma uma das conclusões do meu livro Música e Poder foi ontem escrita por Miguel Sousa Tavares: "Uns dias fora daqui fazem sempre um inestimável bem às ideias e à perspectiva. Fora de Portugal, Portugal não existe: o mundo não quer, rigorosamente, saber de nós para nada."
Pequeno prazer pessoal; assim não sou só eu que digo, suspeito como sou... Viajar mais, daria para medir melhor a ausência. Acreditem

sábado, 18 de junho de 2011

Sobre o real e as imagens do real: ver na televisão ou estar lá. Não é a mesma coisa.

Estive em Londres no dia a seguir ao atentado de 2005. Antes de partir uma amigo disse-me que era "histórico porque de certo modo ia para um país em guerra". Passei de taxi numa rua de onde pude ver o autocarro destruído. Vi as notícias e as análises (recatadas) na BBC. Saí à rua e nessa noite assisti a uma ópera de Ferneyhough. Nos dias seguintes, passei várias vezes na estação do comboio onde estavam as flores em homenagem aos mortos, de que se devem lembrar.

Comecei a sentir um mal estar crescente. Não por o país estar em guerra (não estava, pura e simplesmente). Mas porque senti que nós, em Portugal, vemos tudo na televisão desde 1918 (passe o exagero cronológico: não havia tv), com excepção da guerra colonial. Quem lá esteve viu e sofreu o que havia para sofrer. Com essa excepção, tudo o que se passa no mundo só nos afecta - desse ponto de vista particular - muito indirectamente: os emigrantes negros lembram-nos a pobreza das populações desses países; os ucranianos, os romenos, e outros lembravam-nos o fim da guerra fria e o descalabro económico que se seguiu para muitos milhões de pessoas, apesar de meia dúzia ter enriquecido. Para os que enriqueceram recuperou-se até uma palavra quase já esquecida na nossa língua: o magnata, o magnata russo.

Finalmente consegui pensar o seguinte: é muito diferente estar aqui, ver aqui ou ver na televisão, mesmo que seja a daqui. Há um efeito de aterrorizacão, de intensificação nas imagens que, por um lado, banaliza e por outro, reforça e por isso, "constrói", algumas dimensões dos acontecimentos
Nas TVs parece que o mundo vai acabar. No local, tudo leva a crer que a vida continua.

Este problema é o do efeito de transformação do real que os media audio-visuais realizam.

Vou acrescentar aqui um texto que saiu no jornal Público em 2004. O problema é o mesmo: qual é o efeito da circulação das imagens que nos são dadas a ver - alguém as filma, alguém as escolhe, como se verá em baixo, alguém põe música por vezes - nas nossas percepções do mundo?

A Estetização do Horror
Por ANTÓNIO PINHO VARGAS COMPOSITOR
Domingo | 05 de Setembro de 2004

Ontem [dia 3 de Setembro] fiz um esforço para chegar a casa a tempo de ver as notícias às 8 horas sobre o desenlace do assalto terrorista na Rússia. Ia pensando no caminho que o tempo da guerrilha "heróica" de Guevara ou do Vietname tinha acabado há muito, que as lutas contra as potências pela via terrorista tinham chegado a níveis de inumanidade bárbaros e que, com Putin, as respostas eram sempre brutais e trágicas, com muitas vítimas inocentes. Vi as notícias, as imagens de terror, tirei as conclusões que pude mas no final vi outro objecto digno de análise. Antes de avançarem para outros assuntos do dia, a SIC e a TVI - não vi na RTP - passaram resumos de 30 ou 45 segundos do já mostrado. Sem palavras e com música. Este momento realiza a passagem para a estetização do horror.
Não acrescenta nada às notícias, mas configura um formato determinado dos media. Num caso com música lúgubre, próxima das atmosferas mais sinistras de Bruckner, com incidência no plano da menina loira dentro de um carro, no outro, com música mais dissonante e rítmica, no estilo dos herdeiros modernos de Stravinsky dos filmes de acção de Hollywood: planos de automóveis e ambulâncias a grande velocidade, soldados ou pais a correr com crianças mortas ao colo.
Escrevo e é-me insuportável o que escrevo. Tento descrever o que vi e ouvi mas a minha descrição ofende-me. O resumo que estetiza o horror desloca-se do simples registo noticioso para o do videoclip da catástrofe. Lembrei-me de um amigo me ter dito que, na guerra de Angola, a coisa mais estranha para ele era a guerra verdadeira não ter música de fundo. Esta falha grave da realidade estará em parte já resolvida com a possibilidade do uso de auscultadores dentro dos capacetes; como, no filme do Michael Moore, o daquele piloto do tanque americano no Iraque que, em plena acção, está a ouvir um rock adequado: "Let them burn". Nada me garante que os membros da Al-Qaeda, na sua mistura peculiar de fundamentalismo pré-moderno e sofisticação tecnológica assassina não usem Portable CD Players com os mesmos objectivos.
Que audio-mundo é este que estamos a fazer?

Músico, compositor http://jornal.publico.pt/2004/09/05/EspacoPublico/O04.html

Este texto está disponível em pdf no meu site desde essa altura;
http://www.antoniopinhovargas.com/ideias.php