sexta-feira, 27 de julho de 2012

Esboço para um auto-retrato (em construção)


1. Qualquer compositor trabalha de acordo com uma filosofia da história. Frequentemente esta filosofia, apesar de determinante, não se expressa enquanto tal nos discursos mais correntes, mas apenas em termos técnicos musicais. Julgo que é um equívoco.

2.1. Boulez: "Há mais tradição numa Bagatela de Webern do que na Sinfonia Clássica de Prokoviev". Esta frase resume a visão dicotómica sobre as duas opções centrais do século XX.
2.2. Em que consiste a antinomia da posição da vanguarda do pós-guerra: por um lado, procurar legitimação na herança histórica, no mesmo momento em que, por outro lado, se defende e prescreve uma posição particular que obriga a romper com ela, reclamando a exclusividade da leitura e da interpretação correcta do passado.

3. Em relação a estas questões a minha posição é dupla :
a) recusa tanto os termos da dicotomia como a antinomia moderna radical;
b) mas não se inscreve na tradição "neo-clássica" (aliás, ela própria, moderna) na medida em que considera "vividas" e "admiradas" - reais, inapagáveis - algumas obras singulares produzidas no período das vanguardas pós-1945 e, por isso, que não é possível ignorar a sua existência e as suas consequências. Recusa um restauracionismo tonal de princípio ao mesmo tempo que procura superar as antinomias e prescrições anteriores. A música hoje tanto pode ser tonal como não ser. Mesmo, eu diria especialmente, no interior de uma única peça.

4. Esta posição, que reclama a liberdade do acto criativo e a singularidade das obras, de cada obra, é sempre mais difícil de realizar, na medida em que assume, em cada momento, uma posição de escolha livre e contingente. Isto não significa escolha "arbitrária"; significa uma escolha individual com base nos critérios que considero adequados naquele momento específico. Mas, assim sendo cada obra é sempre um começo, tanto quanto um estar-lançado em termos de possibilidades infinitas em aberto.

Nota à parte: a diagonal


Diz Alain Badiou: "o ponto chave do pensamento filosófico é sempre traçar uma diagonal através, e por entre, os binarismos estabelecidos […] através das oposições categoriais, delineando uma diagonal sem precedente."

Face às oposições binárias, às dicotomias, a criação aspira - através de um "esforço levado a cabo com a maior dificuldade" e não como "efusão espontânea de uma capacidade pessoal" - a encontrar a diagonal que permite à obra realizar-se como evento sem precedente. Este termo aqui é usado para além de qualquer conotação estilística. Caso contrário estaríamos de novo capturados pelas oposições binárias. Uma obra constitui-se sem precedente  na medida em que consegue ultrapassá-las e transitando através da forma, traçando diagonais, e assim atingir a singularidade

sexta-feira, 13 de julho de 2012

O provincianismo dominado pelos critérios da globalização anglo-americana não atinge apenas a música. A própria Universidade é um bom exemplo.

-->
No artigo de Diogo Ramada Curto levantam-se uma série de questões importantes relativamente aos atuais critérios de avaliação em vigor no sistema universitário que representam uma verdadeira perversão das formas de saber.
Escreve o autor: “se é através dos grandes livros que nos podemos formar, se são eles que devem estar na base de um ensino crítico e vigilante, como explicar a generalização de uma moda em que só os artigos –escritos ainda numa língua como o inglês, que se internacionalizou à custa da sua própria simplificação – parecem contar?“
Esta dominação geocultural (e geopolítica) – que nas músicas atinge proporções gigantescas – tem uma relação evidente com a dita moda universitária. Segundo Ramada Curto há uma “tendência para uma hegemonia dos modelos de comunicação baseados em artigos e em investigações colectivas, impostos pelas ciências ditas exatas ou de laboratório; uma falsa ideia do que acontece “lá fora”, num mundo globalizado de matriz anglo-americana; e um fascínio pelos meios de comunicação e de circulação da informação que potenciam leituras fragmentadas e descontínuas, em detrimento  da consulta aprofundada de obra de fôlego, do livro, no seu formato mais clássico e em suporte de papel”.
Mais adiante prossegue: “Neste panorama, e por todas as razões apontadas, será possível pensar na existência de uma cultura dominante, monopolizada pela prática das universidades e dos centros de investigação que destruiu a centralidade do livro. Ora, é contra toda esta cultura dominante que me insurjo.”
Aconselho a leitura deste artigo “O livro: contra a corrente” (Público, Ípsilon, dia 13 de Julho 2012: 39) que lança alguma luz mais ampla sobre todo o sistema universitário alargando alguns aspectos que foram objecto, no campo dos dispositivos de dominação cultural de idêntica proveniência, no meu livro Música e Poder (Almedina, 2011) no campo musical. Na verdade, uma das razões de que faz do meu livro um pesado objecto – em todos os sentidos do termo – resulta deste conjunto de dispositivos que passam pela tanto pela atual moda universitária - primazia de artigos em inglês - como pela  “falsa ideia do que acontece “lá fora”, termo que usei num capítulo, a partir da sua formulação em Eduardo Lourenço, e a idêntica atitude e hegemonia no campo cultural em todas as artes. Um dos problemas desta ideia falsa –porque imaginária – do “lá fora” é que torna a vida “cá dentro” mais pobre e próxima do infernal.