sexta-feira, 18 de novembro de 2011

O que é um melónamo hoje? Quantos tipos de melómanos existem? Uma reflexão, depois de um ensaio, sobre o mutável e o imutável.

Em 1950 havia apenas um tipo de melómano, fácil de definir. Um melómano era um frequentador habitual de concertos. As transformações entretanto ocorridas do ponto de vista da tecnologia deram origem a um outro tipo de melónamo nem sempre coincidente com o primeiro grupo. Este segundo tipo define-se, mais do que por ser um frequentador de concertos, por ser, antes de tudo o resto, um comprador de discos, por vezes, mesmo um coleccionador de discos. Qual é a diferença entre estes dois tipos de amadores de música? Haverá certamente um grupo que viaja intermitentemente entre os dois tipos. Eu próprio pertenço a este grupo misto. Mas, segundo Antoine Hennion, aquilo que hoje marca decisivamente o mundo musical é o conjunto de transformações que a existência da indústria discográfica provocou nas práticas e no contacto dos amadores (no sentido literal do termo, aqueles que gostam de música) no contacto com a música e no seu conhecimento dela. Hennion, que tem escrito amplamente sobre a "paixão" musical, sobre o estatuto do amador, como alguém que pode definir a sua subjectividade de forma activa, muitas vezes contra as categorias pré-definidas em que as músicas de hoje se dividem ou, mesmo, contra as práticas das intituições dos vários tipos que se dedicam à música. Por outras palavras criam em sua própria casa "um mundo musical" que lhes é específico, que resulta das suas escolhas, dos seus interesses, da sua própria possibilidade de comprar discos. Face ao que foi dito não pretendo de modo nenhum colocar em questão nenhum destes tipos de melomania nem questionar a infinita diversidade das escolhas que constituem cada subjectividade assim definida. No entanto gostaria de sublinhar algumas diferenças de vulto que não devem ser ignoradas. Em certos momentos das minhas aulas - sobretudo de História de Música do séc. XX-XXI - faço uma espécie de teste com os alunos para atingir um objectivo relativamente simples. Falo durante algum tempo da ópera Wozzeck de Alban Berg. Ouço as opinões sobre a ópera, dou as minhas próprias, e instala-se um diálogo muitas vezes interessante sobre aquela peça. Depois vem a pergunta fatal! "Quantas vezes ouviram Wozzeck num teatro de ópera?" O resultado é sempre idêntico: nenhuma. A conclusão é por isso fácil de retirar; as nossas ideias sobre música, as nossas opiniões e, o que é pior, os julgamentos de valor sobre muitas peças e muitos músicos tem como base exclusiva o conhecimento através do disco. A questão é a seguinte: a música é por definição ontológica uma eterna possibilidade de existir. Existe a partitura, no caso da música ocidental, e por isso existe a possibilidade infinita de voltar a ser tocada, uma e outra vez. É no acto de ser tocada que os signos que estão na partitura adquirem a sua qualidade de "som", sem o qual não há música. No entanto, um desses actos - seres humanos a tocar música - pode ser gravado (eventualmente editado e trabalhado do ponto de vista sonoro) e nesse momento emerge o objecto chamado disco no qual "uma" interpretação", realizada num dado local e num dado dia, torna-se um objecto tecnicamente reprodutível e por isso sempre "idêntico a si próprio", o que é justamente o contrário da possibilidade de devir-eterno que a música contempla. Claro que se pode gravar outro disco a seguir a tocar a mesma peça, eventualmente por outros músicos, e aí surge um dos outros aspectos principais do melónamo do novo tipo: o coleccionador de várias interpretações. À partida esta possibilidade de comparar as diversas interpretações devia assegurar a consciência da infinitude das interpretações possíveis. Mas, o amador, encerrado no seu próprio prazer solitário, muitas vezes cede à tentação fomentada pelas revistas cujo negócio é publicar críticas de discos e dar cinco estrelas, Choc Musique, ou Diapason d'or, etc., que inventam o conceito de "interpretação de referência", coisa que nunca poderia existir sem a reprodutibilidade técnica. Sem os discos haveria apenas memórias de concertos inesquecíveis. Mas nem mesmo o "inesquecível" consegue resistir à passagem do tempo. Então o que ficaria seria apenas uma recordação de um momento particularmente emocionante, sensível, exaltante, está, como todas as recordações, destinada a tornar-se progressivamente mais vaga até desaparecer juntamente com o desaparecimento do corpo do ser humano em questão. Pelo contrário, o disco e a sua existência reprodutível é aparentemente infinita. Gostaria de terminar sublinhando a experiência sempre renovada de constatar que nenhuma das minhas peças é definitivamente conhecida por mim. Aquilo que é definitivo, como disse atrás, são os discos. Mas o que está eventualmente num disco - e com maior evidência uma obra que ainda não esteja gravada num disco - nunca fechará as portas sempre abertas do devir, que é o essencial da própria possibilidade da música. Muda o dia, muda a orquestra, muda o quarteto de cordas, mudo eu, muda a temperatura, muda a acústica da sala e, de repente, estámos perante o facto indesmentível: aquilo que pensávamos ser "a peça", foi apenas "aquela interpretação" da peça. Tendo total direito à sua colecção de discos - eu tenho direito à minha colecção - o segundo tipo de melómano ganharia na sua percepção daquilo que é essencial na música - a sua eterna contingência - se no momento em que se desloca a uma sala de concertos soubesse que nem vai ouvir um disco, nem vai ouvir uma peça. Vai ouvir apenas aquela realização de uma peça que mantém integralmente em si a possibilidade sempre renovada de voltar a ser. Esta é a grande diferença entre as duas entidades que temos vindo a analisar. É que um disco, por melhor que seja, nunca deixará de ser sempre igual a si próprio. Esta diferença entre o mutável e o imutável é a diferença fundamental entre os objectos de culto dos dois tipos de melónamos.

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Notas sobre Onze Cartas (2011)

Antes de qualquer outra coisa, uma nova obra musical é um objecto lançado mo mundo, atirado ao seu vir-aser uma obra. Tranporta consigo o peso de quem a fez, a marca do lugar que a viu nascer e a acção dos artistas que lhe dão vida. Neste caso tem também três linguas das muitas que existem do mundo, três linguas que têm em comum o facto de serem linguas originárias de países do sul da Europa. A marca geocultural que lhe pesará no destino está já inscrita desde o inicio nas palavras sublmes dos três escritores dos textos nos seus vários confrontos com o acto de escrever. O projecto desta peça teve três momentos fundamentais. O primeiro, a ideia de uma peça sobre o acto de escrever, enquanto forma particular de viver e dar vida, com a escolha e selecção dos três autores em 2001. O segundo momento foi uma primeira realização do “libreto” assim constituído numa versão electro-acústica, apresentada duas vezes, já com a perspectiva de que aquele seria um passo na direcção da última versão com orquestra sinfónica que hoje iremos ouvir. Os narradores partilham as nacionalidades dos autores dos textos: italiano, argentino e português. No primeiro momento de 2001 não poderia imaginar a actual situação do mundo. No entanto, essa inscrição geocultural estava já inscrita no projecto de peça a fazer. Não terá sido um acaso uma vez que é essa a minha condição: sou um compositor português que vive e trabalha em Portugal. Essa condição, a forte consciência dela, não impede “o desejo de universal” inerente à obras de arte, mas a todas elas nascem num determinado lugar do mundo e não noutro. Gostaria de acrescentar duas palavras sobre a relação entre o texto e a música. Sempre que se verifica uma tal sobreposição – cantada ou dita – o texto transforma-se numa espécie de libreto que interage, amplifica, modifica, determina e é determinado pela música e com a música. Torna-se uma terceira coisa, uma sinfonia-ópera ou ou ópera-sinfonia. Defendo há já longo tempo a liberdade como atitude base do compositor. A leitura de uma artigo de Wolfgang Rihm em 1989, On freiheit, desencadeou essa reflexão que prossegue até hoje, de várias formas. Parafraseando uma frase do compositor alemão que diz “a tradição é sempre a ‘minha’ tradição” posso escrever que a liberdade e sempre a ‘minha’ liberdade. Não teria qualquer sentido que fosse de outro modo. Agradeço às três instituições que me honraram com a sua associação para esta encomenda no ano em que completei 60 anos de idade, a Casa da Música, o Centro Cultural de Belém e o Teatro Nacinal de São Carlos.