quinta-feira, 31 de julho de 2014

UMA PRAGMÁTICA DA SOBREVIVÊNCIA?


A pequena tribo que frequento, da qual faço parte, é uma tribo acossada, por vezes deprimida, secretamente cruel nas suas rivalidades internas impossíveis de reprimir, lados que se misturam com lados de alegria, de prazer, de satisfação a que se pode chamar o amor pela música. Deve dizer-se que todas as tribos das diferentes práticas musicais manifestam algumas destas características mas, em vários casos, talvez em menor grau e com menor intensidade. Certamente que existem igualmente, entre alguns dos seus membros ligações de amizade, respeito e admiração ou, de um outro ponto de vista, ligações de afinidades electivas de ordem estética ou de tendências ou ainda no interior das subtribos a que a pulverização em inúmeras orientações definem, por vezes com diferenças quase imperceptíveis se observadas à distância. 
Mas o aspecto inicial, que é inegável, será talvez uma consequência secundária de um isolamento social e de uma irrelevância parcial que a atinge fortemente, podendo chegar mesmo à interrogação sobre a razão de ser do seu ensino, dado o facto de o emprego ou o trabalho estar longe de estar garantido à partida. Será um processo em grande parte dependente de factores fortuitos, de pura sorte, ou de sábia orientação muito para além das qualidades supostamente decisivas, as propriamente musicais. No meio de tudo isto, as ditas qualidades musicais, o "talento", a "criatividade", a "invenção", nunca podendo aspirar a nenhum consenso definitivo nem sequer duradoiro sobre as obras, terão de existir de algum modo, caso contrário, não haverá objecto sobre o qual a sorte e tudo o resto de possa exercer.  

Sendo a dicotomia inicialmente descrita um dado da realidade, renovado ano após ano, década após  década, geração após geração, será inevitável a renovação de dois factores antagónicos: o amor pela música, quando existe, a par com o receio face ao futuro. Neste sentido, a ideia de prosseguir esta direcção de estudos, esta "carreira", replica de certo modo o carácter equivalente da própria música, entidade impossível de captar, uma entidade fluída que nos foge entre os dedos. A música não existe enquanto objecto material. Existindo no tempo é em si mesmo um processo temporal que, pela sua própria natureza, existe apenas enquanto existe, antes de chegar o momento final que a devolve ao inefável que se captou na memória. O facto de ser criador não altera nenhuma destas propriedades "glissantes".


O resto são relações de poder que se estabelecem entre os agentes, em dados momentos, dispositivos que definem, por períodos determinados embora sempre em movimento imperceptivel e instável um certo estatuto uma certa aura à volta de um "nome", de uma "obra". Tanto o nome como a obra são atributos sociais resultantes de consensos provisórios e de relações de forças; nunca são definitivos apesar de esta ser uma prática artística atormentada por uma ideia da "história", criada no século XIX, que oprime o criador de hoje a par com a dominação global das indústrias cuturais. Mas estes dois factores de pressão são puramente ideológicos: podem ter, sem dúvida, uma base parcial na realidade mas desencadeam a sua força opressiva conforme são tomados pelas próprias vítimas da opressão como verdadeiros, definitivos ou inamovíveis. Na verdade são históricos e podem ser deslocados, pelo menos em parte, para o exterior a favor do prazer do fazer. Sei bem que esta ideia está longe de ser uma evidência. As sociologias críticas - o paradigma dominante das práticas sociológicas da música - mostraram-nos que aquilo que foi objecto de uma construção histórica é por definição, histórico, e, como tal, passivel de se transformar. São momentos no eterno devir do tempo. 
Basta ter a idade que tenho neste momento (quase 63 anos completos) para ter assistido a inúmeros desaparecimentos tanto de grandes obras como mesmo de grandes nomes, como que atingidos pela fuidez que caracteriza tanto a música-ela-própria, como os consensos provisórios que se movem com idêntica fluidez nas convenções sociais, muito mais mutáveis e provisórias do que nos parecem num dado momento do tempo. No tempo não há fixidez, na vida não há fixidez. Pelo contrário há uma constante "negociação" de atributos e declarações, uma negociação de consagrações e esquecimentos.  A seta do tempo nunca se dirige para o antecipadamente conhecido. Na música, não apenas faz parte do seu próprio ser existir (no tempo) e esfumar-se no final, como a variedade dos seus suportes de existência real (um grupo de músicos a tocar, a fazer, um grupo de ouvintes que, mais ou menos arbitrariamente, partilham uma audição, até ao ouvinte solitário de um disco na sua casa, sendo que, falando-se de discos, se deve considerar a extraordinária rapidez com que os seus suportes têm mudado) manifesta a mesma fluidez e idêntico desaparecimento final enquanto escuta.

É um facto que um disco parece dar à música uma eterna perenidade. É um registo fixo e como tal permanece. Produz de idêntico modo a possibilidade democrática de alargar o número de ouvintes de qualquer peça musical. Sendo isto uma verdade irrefutável, se colocarmos o centro da observação na escuta, um disco arrumado numa prateleira para sempre torna-se tão virtual como uma partitura que nunca saiu das estantes de uma biblioteca. Nestes casos tornam-se inexistências. Existem como suportes mas não mais do que isso. Um disco reclama um ouvinte, tal como uma partitura reclama músicos para a lerem e tocarem, primeiro, e depois de igual modo ouvintes que a percepcionem. Tanto um disco como uma partitura são condições de possibilidade para que tenha lugar a escuta sendo a partitura na tradição europeia igualmente uma condição de possibilidade para poder acontecer o fazer e a escuta que a pressupõe.

No século XX e sobretudo nas últimas décadas verificou-se aquilo que Antione Hennion designa por discomorfose da música. Inicialmente algo que podia acontecer na fase central ou final de uma carreira, a existência e a importância do disco foi gradualmente ocupando um lugar decisivo no início. Mesmo considerando o clube restrito dos "grandes nomes" verifica-se que os grupos, as orquestras, os solistas foram gravando e editando os seus discos não no final das tournés mas antes delas. O modelo da música pop-rock que entretanto se constitui desse modo alargou-se praticamente a todas as práticas musicais. Segundo Hennion, afirma que "as revistas musicais e as críticas centram-se no disco, o que reforça a sua situação dominante no "mundo" da música clássica actual: rubricas "actualidade do disco" ou "dicionário de discos compactos preponderantes, outras rubricas organizadas em função do suporte-rei (como as entrevistas realizadas nas ocasiões das saídas dos discos)" acentuam "a centralização no intérprete e na interpretação como categoria de julgamento das gravações é um aspecto essencial da mediação operada pelas revistas especializadas, que criam uma verdadeira "cultura do intérprete" num universo onde justamente, em relação ao concerto, este último tem tendência a apagar-se, a performance, a "produção" desaparecendo por detrás do produto, o único audível: donde deriva a sobrecarga de fotografias e de comentários biográficos nos livretes dos discos. É impressionante notar que o acento colocado sobre a interpretação pelos críticos reenvia precisamente para a única unidade pertinente para a venda de discos, o intérprete, enquanto a obra pertence ao domínio público." (ib. 80).

É de salientar que toda a passagem anterior se refere, primeiro, à interpretação de obras canónicas do repertório sacralizado e, segundo, que toda a descrição aponta claramente para um país, a França, no qual a par com o Reino Unido, é mais notória a existencia deste tipo de revistas. Em Portugal e, seguramente, noutros países periféricos, não apenas não existem revistas especializadas desse tipo locais ou com o mesmo alcance geográfico ou geocultural mais alargado do que os próprios países de origem. Neste sentido a discomorfose assinalada refere-se acima de tudo à música barroca e clássico-romântica amplamente dominante na produção discográfica desta área musical.  A criação musical de hoje - que por definição não pertence ao domínio público e raramente tem mais que uma interpretação editada, quando tem - não faz parte deste fenómeno global. É por isso uma área na qual a "discomorfose" tem um alcance muito mais limitado. As vendas são muito reduzidas, mesmo nos países centrais e, além disso, verifica-se de forma cada vez mais notória nos 14 anos posteriores à edição do livro citado, uma nítida relocalização da música de hoje no estatuto de "música-para-uma-única-audição-pública" em concerto, quer se siga a edição de uma gravação ao vivo da estreia da obra, quer não. 

Em segundo lugar surgiu a figura do melómano de um segundo tipo. O primeiro era tradicionalmente o frequentador de concertos. Hoje pode existir em paralelo e de forma por vezes sobreposta, o melómano de um segundo tipo, o coleccionador de discos nem sempre forçosamente um frequentador de concertos. O simples factor geográfico pode ser decisivo nesta diferenciação. Quem vive em lugares do mundo onde raramente ou mesmo nunca uma orquestra terá actuado pode pela via do disco ser um melómano intenso do segundo tipo.  Este facto - a impossibilidade do acesso regular - tem como seu oposto o melómano que mesmo vivendo em capitais europeias se pode dar ao luxo de se deslocar com alguma regularidade às grandes metrópoles mundiais. Um exemplo célebre deste tipo ocorreu a propósito do segundo regresso de Vladimir Horowitz aos concertos em Nova Iorque.  Viagens de avião foram propositadamente requisitadas por europeus para estarem presentes nesse evento mítico antes mesmo de o ser.

Todos estes factores conduziram Antoine Hennion e os seus colaboradores para uma investigação ainda em curso - no espaço de enunciação francês do qual faz parte - que coloca no centro da análise a figura do amador musical e o gosto pela música. Hennion que na sua investigação considera todos os géneros musicais e não exclusivamente a música da tradição clássica europeia, reclama que esta figura, o amador musical, tem sido sempre o parente pobre nas narrativas tradicionais: "a história da musica enterra-o sob uma narrativa centrada inteiramente nos compositores. O escrito favorece a obra em deterimento do seu auditor. A sociologia da música não se interessa por ele a não ser para fazer do seu gosto o reflexo de mecanismos sociais que, por sua vez, o determinam". (Hennion, 2000:38). Mais adiante escreve: "O amador, tornado antes de mais nada, nos tempos modernos, um comprador de discos, é ainda recalcado pelo discurso pessimista que reveste a música-dentro-de uma-caixa" e as facilidades técnicas e os apetites comcerciais da industria do disco estariam no ponto de o transformar defimitivamente em consumidor manipulado, carregando num botão para receber um programa uniforme". (ib)

Muito haveria a dizer sobre estes dois aspectos que colocam a história da música e a sociologia da música em dois pontos antagónicos e extremos das abordagens. Não é certamente fácil descartar nenhuma das narrativas-tipo em questão, que Hennion aliás aborda com frequência; nem será de tomar o espaço nacional francês como sendo "o mundo". É parte dele, o seu estudo nesta nova perspectiva tem certamente interesse, mas alguns ou mesmo muitos dos aspectos referidos variam consideravelmente noutros espaços geoculturais. Dois pontos apenas antes de avançar. Primeiro, o lugar da crítica em Portugal está remetido para dois, no máximo três jornais, e o número do criticas não chegará a 5 por cento, num cálculo máximo optimista, do número atingido nas revistas mensais especializadas dos países centrais, sendo muitas vezes uma reescrita parcial do já dito nessas publicações; em segundo lugar, há uma espécie de mistério indecifrável àcerca dos critérios que se referem à produção local. É de tal modo variável e inexplicável o sentido das escolhas e das exclusões que parece ser absolutamente fortuito e aleatório o aparecimento ou não de uma crítica, acontecendo este fenómeno a par da presença do tal 5% que resulta da redução dos produtos já objecto de crítica nas revistas dos países centrais. Neste sentido verifica-se "a produção activa de inexistências" que referi em Música e Poder (Almedina, 2011) como estrutura permanente de aniquilação. 

Não obstante creio que há outros aspectos a ter em conta na viragem proposta por Hennion.

O seu projecto visa colocar no seu centro "a escuta", o "amador" reclamando, como possibilidade, uma historicidade da escuta defendendo que "não há razão para que ela se limite a se alinhar por uma história da música resumida às suas obras célebres".(40) O procedimento proposto passa por dois lances: primeiro, opera uma revisão simétrica do lado da história da música centrada no compositor (vida, homem, obra...) partindo antes do amador, do auditor e não do objecto [a obra]; em segundo lugar, e contra o determinismo social inscrito na maior parte das análises de carácter sociológico, sublinha que o amador não é simplesmente passivo face a determinações externas mas, pelo contrário, se constitui a si próprio como tal: nas suas hesitações, nas suas dúvidas, que ocorrem no processo da constituição do gosto, sempre instável e provisório, portanto, sempre em situação. Para o autor este ponto de partida - a escuta - "desestabiliza os quadros demasiado solidamente instalados à volta da música" como afirma. A investigação do grupo de Hennion está um curso, como foi dito, e será certamente cedo para retirar quaisquer conclusões demasiado apressadas. No entanto a simples mudança do ponto de observação proposta tem virtualidades que importa considerar. 

Neste momento interessa-me somente retirar deste novo tipo de pressupostos os vários aspectos que me dizem respeito como músico e compositor e, face à inquietude da situação descrita no início, acrescida do conhecimento que a investigação efectuada em Música e Poder me podem forçar a pensar diferentemente, que me interrogam no meu trabalho, que me podem ajudar a encontrar respostas, mesmo que parciais, a um conjunto de questões que me afectam enquanto criador. 

(continua)

António Pinho Vargas, 1 de Agosto de 2014

sábado, 12 de julho de 2014

"O homem duplicado" - texto de Maria Augusta Gonçalves no JL 9-22-Julho. p-26

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Nota prévia: Este artigo de Maria Augusta Gonçalves, publicado nesta semana de 9 de Julho, 2014, será talvez o mais importante que foi escrito até hoje sobre o meu trabalho recente, no seu todo. É, inicialmente, uma crítica aos dois discos recentes a ópera Outro Fim e o do Drumming, Step by Step e, nesse aspecto, uma análise muito bem feita. Mas vai bastante mais além, interrogando a realidade da nossa presente condição enquanto compositores. APV

O Homem Duplicado

A ópera "Outro Fim" resulta do trabalho de dois dos mais importantes criadores portugueses atuais: António Pinho Vargas, compositor, e José Maria Vieira Mendes, escritor. A música do primeiro impõe uma reflexão constante, na medida em que resulta sempre da inquietação perante a  arte, a vida, o poder que a consome; Vieira Mendes, no teatro, no cinema e aqui, na ópera, estabelece uma reflexão sobre a escrita como instrumento de representação - interrogação - do que é humano e do que, no sobreviver (ou não), ao humano diz respeito. O encontro dos dois autores numa só obra pressupõe, por isso, um frente a frente com algo essencial. O que se confirma.
            Esta é uma "ópera trágica", diz Vieira Mendes nos texos de apresentação. Há um Homem que foge, e um Irmão do Homem que fica. Há também a Cunhada do Homem e a Mulher do Homem. Tudo se passa ao longo das estações de um verão ao verão seguinte. O Homem, distante escreve à Mulher, através do Irmão. Esta acaba por imergir nas mensagens que medeia assumindo a personalidade do próprio Homem ,transformando-se nele - o duplicado que não pode deixar de se apaixonar pela mulher. Mas eis que o Homem regressa e, no momento em que o amor poderia prevalacer, no instante em que poderia haver a possibilidade de redenção, sobrevém a tragédia, o confronto entre um e o mesmo, o Irmão e a sua imagem.  Ele é então o assassino. No final tudo regressa à origem, a história revista pela Mulher que escreve e sobrevive, e a Mãe que recita: "de verão a verão à procura de outra vida, um outro fim ou outro princípio".
            Pinho Vargas conhece bem o drama essencial que Vieira Mendes traduz aqui nesse "amor intenso, interrompido" por um final "trágico e fatal", como o define.  É o drama essencial que atravessa a sua obra e que a coloca entre as maiores, o drama que tem a ver com a vida e com a dor, com tudo o que é possível num só instante, num só ser.

            A música surge, assim, como se fosse ela mesma um libreto, um outro e o mesmo libreto, humano, multifacetado, como as personagens, o seu pensamento, a sua ação, o meio onde se encontram. Há a música exterior, plena de acontecimentos, como na cena do café, e a mais interior, angustiada tão densa, de tão rarefeita, na precisão dos sons essenciais, como na primavera das cartas que não chegam. É há sempre momentos memoráveis, uns a seguir aos outros, há árias e ariosos, como nesse prenuncio do Homem: "Perco a vista" ou o dueto de amor, no outono, entre o Homem e a Mulher, que se inicia com o mais perigoso desejo - "quem dera para mim a vida dos outros" e que termina na "Luz" impossível, "sou tu, ser eu (...] Pele tão dura mão tão gasta".
            A gravação agora editada provém das duas únicas récitas quanto da estreia na Culturgest, em Lisboa, poucos dias antes do Natal de 2008. O elenco é primoroso. Reúne Lassissa Savchenko (Mãe) Sónia Alcobaça (Mulher), Madalena Boléo, (Cunhada), Luís Rodrigues (Homem) e Mário Alves (Irmão), aos quais se juntam 24 músicos da Orquestra Sinfónica Portuguesa, sob a direcção de Cesário Costa.
            A edição de "Outro Fim" foi antecedida em pouco mais de um mês pela publicação de Step by Step, conjunto (belíssimo) de obras para percussão, de António Pinho Vargas, interpretadas pelo grupo Drumming, de Miquel Bernat. O disco abre com os oito "Estudos e Interlúdios", de 2000, uma das obras maiores do compositor, pela complexidade e diversidade rítmica e encerra com "Step by Step: Wolfs," de 2002, que resultou de uma encomenda do Drumming e que recupera "Born to Be Wild" dos Steppen Wolf, e o imaginário de "Easy Ryder". Entre estas duas obras encontram-se outras duas de 2011: "Políticas da Amizade, estudo para vibrafone" - ou ensaio para este instrumento  que retoma um título de Jacques Derrida, e Árias de ópera para tuba e percussão". Uma e outra obra inscrevem-se claramente na abordagem recorrente e profunda do texto e da voz, por Pinho Vargas, no contexto estritatemente musical.
            A aparição tão próxima destes dois discos tem de fazer pensar tudo o que a actividade musical diz respeito e, sobretudo, o que tem a ver com a edição, seja em disco. em partitura ou em qualquer suporte que ateste a sua existência.
            "Outro Fim" saiu com a chancela da Culturgest, que acolheu a estreia da ópera, e "Step by Step,"  não sendo um disco de jazz -longe disso - tem o "selo" do Jazz ao Centro Club, entidade organizadora dos Encontros Internacionais de Jazz de Coimbra. Step by Step encontra-se por isso, sobretudo em lojas que prestam especial atenção ao jazz; "Outro Fim" está à venda na Culturgest , em Lisboa e no Porto,   e em discotecas que se poderiam dizer de "autor".
          Não por acaso, a tese de doutoramento de António Pinho Vargas, Música e Poder, remete exatamente para os processos sociológicos na base da ausencia da música portuguesa no conexto europeu. Seria irónico, se não fosse trágico.  A análise do compositor e toda a reflexão que tem tornado pública, demonstram a incapacidade existente para se cuidar desse património.  Pinho Vargas vai direito ao problema. Quando da apresentação de Outro Fim à imprensa, não hesitou em dizer que teve de "lutar por este disco como pela maior parte de todos os outros" . E como não são muitos, o que é incompreensível, quando se está, provavelmente, perante o mais importante compositor português vivo.
            À parte a faceta de jazz de Pinho Vargas (que também mereceria mais atenção), existe apenas um outra ópera em CD "Os dias levantados" das quatro que compôs, além de antigas edições de "Monodia- quasi un requiem", "Versos", "Six Portraits of Pain" e ", Improvisações", provavelmente já esgotadas, na sua maioria.
           Mas dói ainda mais quando se contam as ausênciasou o que pode sobreviver na memória de quem assistiu às poucas, e muitas vezes, únicas apresentações de cada uma das obras - as oratórias, as peças para orquestra, para conjubtos de câmara, para solistas. O problema multiplica-se pelos compositores portugueses, mesmo tendo em conta alguma evolução editorial , nos últimos anos, que não acompanha, de todo, o que a prática musical cresceu, nas duas últimas décadas.
            Há pouco mais de um mês António Pinho Vargas escrevia que a condição do compositor, atualmente, não difere muito da que tinha no século XVIII, quando a música que compunha existia apenas quando era interpretada ao vivo. Basta a recordação da oratória Judas (2002), do Requiem, de 2012, do Magnificat e do De Profundis, do últimos ano - obras de Pinho Vargas de uma grandeza extraordinária - para se perceber a dimensão do património que se ignora, e da desgraça que é esse alheamento".

Maria Augusta Gonçalves,  Jornal de Letras, 9 a 22 de Julho, p.26


     

quarta-feira, 9 de julho de 2014

Sobre Tânia Achot e a nossa condição

 Sobre Tânia Achot
 
Os casos concretos mostram as estruturas e estas não funcionam se não houver agentes - no sentido sociológico do termo - que as façam funcionar.

Há coisas que não consigo aceitar nem sequer compreender. Umas dizem-me directamente respeito. Outras dizem respeito a outras pessoas, mas vai dar ao mesmo: o inaceitável. Há ums tempos atrás tive uma longa conversa pelo telefone com Tânia Achot. Ilustre pianista, ilustre professora muitos anos na Escola Superior de Música de Lisboa (de origem russa, lá estudou na Rússia e teve um 3º Prémio no famoso Concurso Chopin em Varsóvia). Durante uns 20 ou mais anos foi um(a) dos 3 ou 4 únicos pianistas portugueses que faziam recitais em todas nas temporadas da selecta - no sentido literal - Fundação Gulbenkian. Reformou-se da ESML na altura em que estive fora para fazer o meu doutoramento entre 2006 e 2009. Neste momento orienta alguns alunos de Mestrado noutra escola. Tocou até - não precisava de o fazer para nada que não a sua decisão de o fazer - a minha peça de 1990 Mirrors na Culturgest - num evento privado - na ESMAE do Porto, e finalmente no Grande Auditório da Gulbenkian. Nenhum outro da sua geração o fez, e mesmo da seguinte não foram assim tantos. Agradeci-lhe, foi uma honra, mas foi mais um traço de curiosidade, de interesse, de desafio, semelhante - embora neste caso muito mais convincente - daquele que a levou a apresentar também na Gulbenkian, poucos anos antes, a Primeira Sonata de Pierre Boulez.
Não esquecerei muitas das conversas sobre música que tive com ela e, por vezes, com algumas outras pessoas. O que me leva a escrever aqui é um dos aspectos mais criticáveis das práticas dos agentes culturais, que é a prática activa do esquecimento. Não, não sou eu que me queixo agora. Acrescento que pude ver ao longo dos anos, muitos outros músicos serem objecto de tratamento similar e ignóbil. Mas hoje é da Tânia que quero falar. Disse-me então na conversa que referi: "António, quero-te dizer uma coisa. Agora oriento alguns alunos de mestrado e continuo a tocar piano todos os dias. Estaria pronta para tocar. Sabes quantos convites tive para recitais desde que saí da ESML? Zero. Nem um." Fiquei sem palavras para lhe responder, a não ser: "Aqui é assim, Tânia. Não há explicação".
É isto admissível? É desta forma que se trata uma artista que nos deu música tantas vezes de forma admirável, que formou tantos pianistas ao longo de muitos anos? Não há tantos festivais por esse país fora, muitas autarquias, muitas instituições que apresentam concertos? Não se verificaram muitas vezes casos de pianistas do "grupo dos eleitos" que tocaram até aos 80 anos ou mais? Não fez Alfred Brendel a sua última tournée de despedida quando chegou aos 80 anos, por decisão própria, passando naturalmente por Portugal? Mas não há, de modo inverso, muitos casos de músicos que decidiram pôr fim às suas carreiras ainda muito longe dessa idade, porque simplesmente "não tinham trabalho"? O número é muito vasto. Conheço muitos deles e a sua qualidade era grande. São demasiados. Quando este funcionamento das estruturas culturais, baseadas (no discurso) na distinção, enquanto (na prática) manifestam uma espécie de memória vazia, formatada pelos jornais, de uma espécie de areia feita da total falta de consideração íntima pelos artistas que consideram "locais" enquanto se vergam de honra provincial perante os "grandes artistas do mundo"? Será que ser um grande artista em Portugal é menos digno de apreço? Que poderemos pensar dos agentes culturais portugueses (por mais que pratiquem o "trazer cá" como orientação principal, não deixam de ser aquilo que, no fundo, não gostariam de ser: está escrito no BI)
Esta querela identitária sobre a qual E. Lourenço muito escreveu desde os anos 40 até hoje, está no fundamento de toda a sua formação anterior (que foi a minha também) e em toda a sua prática de sempre. Contam-se pelos dedos aqueles - honra lhes seja - que se regem por outro tipo de critério e que consideram a sua função não apenas em relação ao público, ou à última moda, mas igualmente em relação às comunidades artísticas, aos artistas que dedicam as suas vidas à sua arte.
A música "clássica" - como sói dizer-se - será talvez de todas as práticas musicais, aquela onde é mais comum este "esquecimento em vida" com umas poucas excepções. Talvez porque o número de decisores é muito pequeno e o isolamento social é patente.
Mas daqui envio uma palavra: obrigado Tânia. Longa vida para trás e para a frente.
António.