sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

Fantasmagoria e não-inscrição: o lugar da música

O termo fantasmagoria foi usado por Pierre Boulez no seu artigo "O sistema e a Ideia" publicado pela primeira vez no nº 1 da revista do IRCAM Inhamnoniques, 1987, e pode ser lido hoje na nova edição dos últimos escritos  com o título Leçons de Musique (Christian Bourgois, Paris, 2005: 339-420). Nesse artigo Boulez escreve que a música de Webern é uma fantasmagoria formal. É conhecida a posição dos primeiros anos de Boulez nos quais considerou a música de Webern como crucial como ponto de partida obrigatório, como a realização mais rica e dotada de futuro da série inventada por Schoenberg. Nesse capítulo brilhante, correspondente à fase em que Boulez compunha Répons, encontra-se uma teorização ampla dos conceitos que desde então conduziram toda a actividade de Boulez como compositor até ao fim da vida em 2016. Mantendo no essencial a sua admiração por Webern - do qual gravou uma segunda integral para a Deutsche Gramaphone, depois da mais antiga editada pela Erato - Boulez, consciente de alguns limites da música de Webern que, não lhe afectando a qualidade, nem o potencial conceptual, lhe marcaram a aura perceptiva e a história da sua recepção. Para já guardemos este conceito de fantasmagoria para uso posterior.

O livro de José Gil, Portugal Hoje: o medo de existir (2007) teve um enorme impacto e sucessivas edições até hoje. Apesar de ter sido objecto de muitas críticas, justas a meu ver, relativamente à possibilidade de fazer uma crítica do "ser português" partindo de um ponto de observação externo muito difícil de aceitar e justificar - quem escreve? onde vive? como se pode analisar uma série de caracteristicas de uma suposta identidade nacional sem uma investigação profunda empírica que a sustente?  - o livro de Gil enunciou como conceito base a "não-inscrição" como traço dominante da sociedade portuguesa que se pode resumir e compreender na frase "em Portugal nada se inscreve".

Neste texto iremos procurar associar os dois conceitos,  fantasmagoria e não-inscrição, como pontos de partida para uma análise que procura contribuir para uma identificação do lugar da música portuguesa da tradição erudita europeia tanto em relação ao seu lugar no mundo como ao seu lugar em Portugal. 

Julgo mais que certo que este texto poderá ser discutido nos mesmos termos que o livro de Gil. Embora tendo como ponto de apoio a investigação efectuada no meu livro Música e Poder: para uma sociologia da ausência da música portuguesa no contexto europeu, e não deixando de ser mais modesto no seu alcance e âmbito - não procura definir "o que é um português", nem os traços gerais da sociedade portuguesa, empresa que seria votada a um fracasso - manifesta uma visão subjectiva, ensaística, sem nenhuma pretensão científica de carácter sociológico, nem nenhuma ambição de análise identitária. Tem como base o trabalho feito, o vivido e o olhar. Nada que lhe possa atribuir nenhuma capacidade de esgotar um assunto complexo.

Kramer; a mudança de paradigma em curso; a ausência não apenas da música portuguesa mas de grande parte de toda a música composta após 1950. A fantasmagoria é a actual forma crescente de não-inscrição face à dominação global do pop-rock anglo-americano; a mitologia voluntarista que existe no interior no campo musical.

terça-feira, 26 de janeiro de 2016

Variantes sobre a escrita da História. Não há muitas dúvidas.

Há variantes: "A história é escrita pelos vencedores", disse George Orwell. Walter Benjamin nas suas teses escreveu "a história é contada do ponto de vista dos vencedores". A ideia fundamental é idêntica. Na música verifica-se o mesmo. A primeira história da música com ambições "universais" foi escrita por Karl Franz Brendel em 1852, com o título "Geschichte der Musik in Italien, Deutschland und Frankreich": "do início do cristianismo até ao presente". Trata-se da história da música europeia da tradição erudita e apenas de 3 dos países centrais dela, no século em que foi construído o cânone musical que vigora até hoje.
Apesar de mesmo em meados do século XIX se poderem ter acrescentado algumas periferias já então ilustres - a Rússia, por exemplo, o que Brendel não fez - o facto é que hoje basta acrescentar alguns arredores - "os compositores nacionalistas" - caracterizados pela 'diferença' ou pelo 'esforço de diferença' em relação à grande dominação alemã nesse tempo - e durante o século XX ter em conta os que antes eram 'inexistentes', os Estados Unidos e, em parte, a Inglaterra, para ficar completo o programa geral dos musicólogos e historiadores. Do resto do mundo e das periferias da Europa a história que resta é sobretudo uma história de emigrantes ou de exilados (dentro ou fora dos seus países).
Tomando o poder como uma realidade na geopolítica, na economia, na finança e na geocultura - na qual a música se insere - todas as histórias locais terão de fazer (e fazem) aquilo que Chakrabarty referiu em relação à India: escrevem 'histórias em espelho deformado'. Escreveu: "Enquanto o historiador indiano tem de saber tudo sobre a história do Ocidente para poder ser considerado no seu campo, a inversa não é verdadeira". Nenhum historiador ocidental precisa de saber nada da história da Índia - excepto a que diz respeito ao colonialismo e aos "descobrimentos", um estranho conceito neste caso, ou seja, o momento em que a Índia passa a tomar parte importante no enriquecimento e fortalecimento da Europa.
Na música, sem sair da Europa, verifica-se, tal como em outros e numerosos aspectos, que há várias Europas e não apenas aquela entidade mítica e una que, na verdade, não existe, nem nunca existiu tal como era "imaginada" quando vista do seu exterior. Neste sentido, quando vista das periferias, "a imaginação-do-centro" era simbolicamente mais importante do que o real. O real é que a Europa tem países fortes e países fracos, países poderosos e países frágeis e pobres, países centrais e países periféricos.
Que nos resta? Olhar de frente os factos; compreender os dispositivos de poder e a sua razão de ser histórica; não criar falsas mitologias: e, dando seguimento ao seu amor pela música, criado nesta realidade, não se atemorizar com a sua localização e criar consigo mesmo. Compor colocando-se "fora do mundo" enquanto que uma reconstrução "from below" da história caberá a outros no futuro. Acima de tudo compor com os seus critérios, com a sua história de vida - foi sempre uma - com o seu pensamento musical, o seu pensamento das forças determinadas que cada obra musical põe em acção e tentar o melhor que pode, com a sua autenticidade e a sua honestidade.
O resto transcende-nos. É um processo histórico.
António Pinho Vargas

quarta-feira, 6 de janeiro de 2016

Pierre Boulez (1925-2016)


 Pierre Boulez (1925-2016)

Morreu ontem um grande artista que dominou com a sua estatura de gigante a segunda metade do século XX. Apenas um homem com a sua dimensão extraordinária de compositor, director de orquestra e intelectual poderia alguma vez ter conseguido transformar a sua 'visão do mundo' na 'visão do mundo' do mundo, isto é, a visão que dominou a vida musical da sua área particular no mundo inteiro. As suas peças Rituel, Répons, entre muitas outras, são obras-primas absolutas. Os seus livros especialmente Jalons (1998) reeditado parcialmente com o título Leçons de Musique, Christian Bourgois Editeur (2005), as suas lições no Collège de France de duas décadas, é uma dos melhores livros já escritos sobre música, (na minha opinão) O facto de não estar traduzido em nenhuma outra língua, que saiba, ao contrário dos seus livros dos anos 1950-60, é um facto de nos deve fazer refletir.
A sua própria homenagem póstuma a Bruno Maderna, Rituel in memoriam Maderna (1975):