quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Contado ninguém acredita (excepto aqueles que passaram por isso)

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Contado ninguém acredita (excepto aqueles que passaram por isso): um relato pessoal e uma análise das disfunções da legislação e dos conflitos práticos verificados no ensino da música de 1983 até hoje, de alguns passos dados, mas ainda de outros necessários para as corrigir.

          Há aspectos da vida universitária no sentido lato ou da educação em geral em Portugal que atingem grande notoriedade pública, que chamam a atenção das pessoas, dos jornais, e que podem mesmo levar a forte contestação nas ruas ou a revoltas justas. É compreensível que assim seja dada a enorme importância da educação na qualificação e requalificação das sociedades. Mas há outras áreas que, inseridas nos seus pequenos nichos de existência, passam sempre despercebidas no espaço público ou estão mesmo ausentes e, como tal, nunca “existiram”, na verdade, excepto nos momentos de uma eventual greve iminente. Por isso é necessário contá-los, descrever casos concretos e analisá-los: o caso do ensino da música do nível superior é uma dessas áreas.

O ensino da música sofreu uma transformação a partir de 1983-4, com a criação das Escolas Superiores de Música em Lisboa e Porto e a sua integração nas Institutos Politécnicos. Esta reforma foi criada durante a tutela do Ministro da Educação Roberto Carneiro, durante um dos governos de Cavaco Silva.

O primeiro erro foi integrar as Escolas recém-criadas nos Institutos Politécnicos o que não deixa, por si só, de ter representado uma determinada visão da música e das artes. Daí derivaram uma série de problemas relativos às habilitações dos recém-formados e a uma sucessão de nova legislação, novos despachos, novas correções das legislações e das disfunções anteriores, durante mais de duas décadas. Não é aqui que poderei abordar toda esta problemática em questão. Quero apenas referir que a transição se deu entre dois modelos históricos: o ensino da música do modelo conservatorial – de origem francesa, pouco depois da Revolução Francesa e que durou quase dois séculos – e a adopção do modelo anglo-saxónico integrado nas Universidades que, a partir sobretudo dos anos 1980, adquiriu gradual primazia no continente europeu. 

Esta transição não foi fácil uma vez que os velhos Conservatórios existentes estiveram sempre, em todos os países, separados do sistema universitário e, como tal, seria necessário, considerar sobretudo dois problemas: primeiro, o novo estatuto secundário que passaram a ter e segundo, a forma como o estatuto dos professores com muitos anos de serviço, seria considerado face ao novo sistema. A solução foi risível: o problema não foi sequer considerado. O segundo aspecto prendia-se com a necessária contratação dos professores para as novas escolas. Tendo sido escolhidas para as Comissões Instaladoras das Escolas Superiores de Música (ESM) pessoas de reconhecido mérito no campo musical ou do ensino musical, mas cautelosamente escolhidas dentre os que tinham feito cursos universitários, fosse de que tipo fosse,  gradualmente – num processo longo - foi-se reclamando a sua progressiva integração no sistema universitário, com os seus graus, licenciatura, mestrado e doutoramento – que foram sendo incentivados ao longo dos anos, sem que tivesse sido encarado atempadamente o estatuto dos antigos professores ou alunos formados pelos Conservatórios, sem qualquer estatuto aplicável similar aos do sistema universitário, como aliás em todos os países do mundo, com exceção dos anglo-saxónicos, como já referido.    

Dos erros cometidos nesta transição resultaram muitos erros, muitas injustiças, muitos oportunismos e mostrou-se muita falta de competência por parte de quem detinha a possibilidade de legislar ou decidir sobre a matéria. Os antigos conservatórios passaram a destinar-se ao ensino secundário, mas mais do que isso, de repente, começaram a ser pedidos aos antigos alunos formados nos Conservatórios, com provas dadas, alguns já em pleno trabalho profissional de qualidade em orquestras, em escolas e em carreiras mesmo solísticas, aquilo que eles não podiam dar: os seus certificados de habilitações universitárias. Esta questão, que afectou muitas pessoas, não me afectou pessoalmente uma vez que tinha completado o curso de História na Faculdade de Letras da U. Do Porto e um membro da C.I. da ESML confessou-me, com perplexidade, que devia ter sido escolhido, não por ser o músico que, era mas por ter também o curso de Engenharia.  Este aspecto mostra que a desconfiança estava presente desde início em relação à atividade artística como sendo uma atividade “menor” face aos altos cursos universitários tradicionais.  

Como referi atrás, para tratar de uma vez a questão dos dois mundos do ensino, até então separados durante quase 200 anos, teria sido muito mais fácil, desde logo, com pragamatismo, atribuir uma determinada equivalência aos professores formados nos Conservatórios, a exemplo do que sucedeu noutros países europeus que passaram pelo mesmo processo. Mas, em Portugal, as ESM começaram a funcionar com poucos professores e as suas comissões instaladoras nomeadas pelo governo, ou pelos Institutos, optaram por recrutar novos professores dentre os antigos e alguns novos, mas sempre caso a caso. De todos os erros de base deste mau começo, decorreram as múltiplas disfunções que demoraram mais 20 anos a começarem a corrigir-se. 
Darei alguns exemplos concretos de alguns casos absurdos, todos do meu conhecimento pessoal, sem mais interpretações ou análise. Por vezes, os factos são mais eloquentes do que quaisquer análises. No incício deste processo

1.   No incício deste processo, alguns músicos já em plena atividade profissional nas orquestras, Gulbenkian, Sinfónica Portuguesa e Orquestra do Porto, foram obrigados a inscreverem-se nas ESM para poderem ter habilitação adequada. A maior parte deles depois integrou e muitos integram ainda o corpo docente.
2.       Em certos casos, mais difíceis de tratar deste ponto de vista, cego e burocrático no qual a própria prática profissional era totalmente descartada e apenas o diploma em questão ou era considerado, verificou-se que em numerosos casos e durante mais de uma década muitos professores se depararam com a seguinte realidade: no momento do exame final, os alunos que tinham tido, passavam imediatamente a ter uma habilitação superior à do professor que tinham acabado de ter!
3.  Noutros casos professores considerados aptos para ensinar na escolas, foram considerados inaptos para prosseguirem os seus estudos no patamar seguinte, entretanto criado na própria escola, coisa que não se verificava com os seus próprios alunos. A mesma escola que considerava um professor competente para lecionar, não o considerava habilitado ou competente para se inscrever a par com os alunos que ele próprio tinha tido. Não conheço maior absurdo. Mas aconteceu com vários.
4.   Face a estas disfunções e à rigidez que se instalou face a estas questões alguns professores inscreveram-se nos Cursos da Universidade Nova – destinado à musicologia história – e assim poderem apresentar o diploma de licenciatura. O facto de o âmbito de estudos não ser equivalente de modo nenhum não reduziu a absurda prática que teimou em nunca considerar a habilitação artística propriamente dita como relevante. Apenas há poucos anos se instituiu “o estatuto de especialista” para obviar aos casos mais flagrantes.
5.    Nesta situação, muitos professores optaram por se inscrever na própria escola onde eram professores, noutros cursos paralelos, de modo a evitar possíveis consequências negativas para a sua carreira docente, muitas vezes ao fim de dez ou quinze anos de serviço.
6.      Verificaram-se alguns casos em que movidos pelas mesmas motivações e empurrados pela hipocrisia legalista de tipo novo-riquismo universitário, alguns professores se inscreveram com alunos de si próprios e assim obtiveram os diplomas que a burocracia lhes recusava de outro modo. Não foram poucos estes casos. Kafka não seria capaz de imaginar melhor. E no entanto...
7.       Ao contrário do que possa parecer, não me parece que esta prática tenha sido censurável do ponto de vista individual. Face à rigidez referida, à atitude temerosa das instituições vítimas do complexo neo-universitário, que, aliás, atinge em geral os próprios politécnicos e das disfunções na articulação mal pensada e pior implementada entre as diversas instituições do ensino superior musical, que levava muitos formados nas novas universidades, com valências determinadas mas seguramente não comparáveis em termos de formação com as dos alunos das ESM, mas, pelo contrário e inversamente, possuiam habilitação académica superior face à diferença de base então em vigor entre o ensino Universitário e o Ensino Politécnico. É necessário afirmar que as principais vítimas destes erros foram numerosos músicos e professores que, durante décadas, se viram na necessidade de interromper as suas carreiras profissionais ou de  lidar com a rigidez burocrática e os critérios de dois pesos e duas medidas já exemplificados, que imperava ou ainda impera como lei.
8.      Por isso, compreende-se que, perante uma tal quadro, até a situação aparentemente mais absurda – "ser aluno de si próprio" – que, à partida parece moral e eticamente insustentável, foi no entanto admissível, quando, do outro lado, do lado das direções, das tutelas e dos sucessivos ministérios não houve nunca uma ação decidida nestas disfunções. Tudo aparentemente para evitar aquilo que parecia o mais assustador ou ameaçador aos olhos dos decisores: considerar que ser competente como músico e professor de música – de facto, essa competência sendo reconhecida pela instituição uma vez que se tratavam de professores ao serviço das escolas, nalguns casos há mais de uma década – deveria naturalmente poder confirmar-se através de uma equivalência determinada no momento adequado para atribuir uma habilitação académica, o que nunca se verificou nas leis, senão após vários anos de instabilidade. Verificou-se que um combate surdo pela superior legitimidade dos diferentes saberes – em suma, teóricos ou práticos – se manifestava com persistência, ao ponto de os únicos detentores da possibilidade de atribuir equivalências – longos anos apenas o Curso de Ciências Musicais da Universidade Nova - nunca conseguiu vencer os seus aparentes e reais "complexos de superioridade" académica face àquilo que designavam pejorativamente, nos piores mas significativos casos, como músicos “práticos”. Um doutor era sempre um “doutor”. Este aspecto de “distinção”, certamente próprio da sociedade portuguesa a começar pelo tratamento das pessoas licenciadas no quotidiano, se comparado com outros países, nos quais doutores são apenas os médicos, como a Alemanha, a Holanda ou a Inglaterra e outros, teve aqui uma manifestação esplendorosa desta caracteristica atávica e medíocre e de uma falta de visão de futuro que nos marca o ser colectivo. 
  9.    Ao longo destas duas décadas verificou-se uma permamente turbulência na legislação relativa às bolsas de doutoramento por parte do Ministério da Ciência e Tecnologia. Tendo regras diferentes das universidades, impedidos de aplicar a regra da "licença sem vencimento", nem "o ano sabático", os Politécnicos foram alternando, de acordo com as mudanças da legislação da FCT, entre a impossibilidade e a possibilidade face a esta questão. Aqueles a quem aconselhava fortemente a fazerem os seus doutoramentos, em certos anos, puderam manter o seu vínculo, mas noutros anos, pura e simplesmente, foram obrigados a abandonar as escolas. Neste casos funcionou internamente o "acordo de cavalheiros" informal, geralmente cumprido inter pares, mas alguns dos novos doutorados, uma vez reintegrados, viram, nalguns casos, o seu vencimento diminuído por erros burocráticos de processamento, a sua situação nas escolas oscilante, e ainda o seu novo estatuto tardiamente reconhecido, de acordo com as crises financeiras dos Institutos. As recentes reclamações em curso dos bolseiros da FCT traduzem a continuação da cegueira legislativa e, sem dúvida, uma desconsideração da actividade científica . 
10.  Alguns deste agentes dos cursos universitários que se apressam agora a tentar estabelecer protocolos com as ESM, quer do Porto quer de Lisboa, perante o inegável sucesso de que estas escolas sempre deram mostras durante anos, ficaram, nessa fase de transição, como que paralisados e num estado de auto-encantamento face ao seu próprio estatuto académico universitário e sempre resistiram a considerar os músicos formados nos politécnicos no mesmo patamar sequer. Esse estatuto académico é, em si mesmo, totalmente legítimo, como é evidente, mas, ao mesmo tempo, é específico e não contém nenhuma superioridade face a outras valências e competências. Esta pequena guerra entre instituições, entre ideias feitas sobre saber teórico e saber prático - uma querela epistemológica - provocou danos concretos em muitas pessoas. Mas, por exemplo, no momento da “verdade”, de uma verdade particular, neste caso, um concerto, o momento em que era necessário contratar um músico ou um cantor para fazer um concerto, certamente que os critérios que prevaleceram sempre foram os da competência especificamente musical, as suas qualidades reais enquanto músicos e não ocorreria a ninguém, responsável cultural ou agente da vida musical nestas circunstâncias, perguntar a determinado pianista considerado, cantor com carreira sólida, compositor de créditos firmados, etc., qual seria o seu estatuto académico.  O lugar da importância desse título é outro e, nesses momentos, a querela epistemológica era suspendida pela força do real.

Conclusão

Esta não consideração das diferenças entre os saberes, esta vassalagem ao saber universitário, visto como superior e interpretado no seu sentido mais restrito, “o diploma académico”, esta resistência à consideração da interpretação ou da criação, como factor de apresentar, uma outra forma de saber, na próprio acto da performance outra forma de conhecimento, eventualmente mais rico, foram factores manifestos de tribalização autista inter-instituições e de novo-riquismo universitário que afectou um número considerável de pessoas, durante largos anos. Neste momento, em que proliferam cursos de Estudos Artísticos nas Faculdades, Cursos de instrumentos, composição e jazz nas Universidades, esta questão está, finalmente, a começar a ser esbatida. É de lamentar que tenha demorado tanto tempo um acerto, uma aceitação da especificidade e da complementaridade dos vários saberes não só possíveis, como realmente existentes, na diversidade de mundos da vida que é própria do diversidade do real. É nos pequenos mundos fechados que se verifica a construção de castelos e de feudos de duração curta e também aqui se manifesta uma característica geral da sociedade portuguesa. Além disso, a troca entre os diversos saberes só pode ser enriquecedora, ao contrário do pareceram pensar em tempos aqueles que colocaram o saber teórico em concorrência com o saber prático. Estes saberes, se considerados corretamente no seu lugar e na sua função, podem e devem interagir. Se forem vistos como concorrenciais tornam-se lugares de lutas e combates por uma primazia sem sentido.    

António Pinho Vargas 

Postscriptum:
1. Os antigos Conservatórios de Música que, como referi foram criados pelo Directório da Revolução Francesa, foram durante os dois séculos seguintes as instituições onde estudava e se formava quem queria estudar música. Não havia outras. Não ter tido este aspecto em conta no momento inicial da reforma foi um erro tremendo. Se não havia outras onde poderiam os músicos estudar? Deviam ter todos emigrado para os EUA ou a Inglaterra onde já existia ensino integrado nas Universidades há mais tempo? Não se tratava por isso de não fazer nenhuma reforma do ensino da música. Ela era necessária. Tratava-se de a fazer tendo em conta aquilo que existia anteriormente na maior parte dos outros países do mundo.
2. Suspeito que alguns passos dados mais recentemente na legislação em Portugal poderão ter derivado, directa ou indirectmanete, da emergência, sobretudo no Reino Unido, por volta de meados dos anos 1990, de uma área de estudos musicais chamada Performace Studies. Como o nome indica, esta área dirigiu-se justamente para o núcleo daquilo que foi fundamental nas disfunções teoria-prática que ocorreram em Portugal desde o aparecimento das escolas superiores. Esta disciplina tem no seu cerne a ideia que a "performance" musical representa em si mesmo, uma forma importante de saber, concomitante com e complementar da  a teoria, da análise musical, da composição, e nesse sentido, acabou por trazer de volta para a academia justamente aqueles contra os quais era dirigida a desconfiança dos "universitários": os músicos. Dada a tendência que preside a todo o tipo de reformas em Portugal - repetir ou adaptar reformas provenientes dos países centrais do sistema-mundo - não se pode deixar de considerar que este terá sido um factor que desestabilizou as convições arreigadas do inútil confronto entre a teoria e a prática, que até então constituiam a base da maior parte das disfunções referidas.      
3. 
-->O secretismo em que se trabalha e administra nestas instituições – e que permitiu muitas das disfunções relatadas – é uma espécie de “adquirido” que deve ser contestado. Atualmente reclama-se “transparência” em todas as esferas do espaço público e na atividade governativa do país. Não há nenhuma razão para que, nestas pequenas instituições, prevaleça aquilo que mais parece um resquício dos antigos hábitos salazarentos das decisões autocráticas e antidemocráticas, tomadas no segredo dos gabinetes, do que o simples e debate de posições diversas no interior dos órgãos próprios das escolas, que, esse sim, deve ser aberto, não ter tabus, nem confundido com uma mera conflitualidade entre indivíduos. É nesses órgãos o lugar para reclamar uma nova atitude, mais consentânea com o carácter institucional que é o seu, e não com uma espécie de concepção – igualmente muito espalhada na sociedade portuguesa – de exercício da função pública como se fosse uma conquista pessoal de estatuto e de poder. Certamente que há “estatutos” diversos nestas instituições e o poder executivo e decisório deve ser exercido nesses órgãos, sem dúvida, e não nos corredores das escolas e das universidades. Mas “o medo do debate”, o “medo do confronto entre ideias diferentes”, “o medo da divergência”, seja qual for o assunto, remete para hábitos autoritários enraizados há longo tempo que urge alterar, modificar, melhorar.