sexta-feira, 25 de março de 2011

Ainda sobre A Grande Desorientação, agora da esquerda portuguesa

Hoje mesmo (24-3-2011) Boaventura de Sousa Santos escreve no Público um artigo importante. Antes do mais é muito positivo que depois do consulado do anterior director - durante o qual um verdadeiro boicote invisível mas eficaz foi posto em prática em relação a tudo que lhe dissesse respeito - se possa ler nesse jornal maior diversidade de opiniões políticas, entre as quais a dele, figura ímpar do pensamento português de hoje. Nunca falei com ele sobre isto, nem sequer o ouvi falar deste assunto mas, neste artigo, afirma que "não foi totalmente por que culpa do PS que se perdeu a oportunidade histórica de criar uma verdadeira alternativa de esquerda com vocação de poder". Refere-se ao Bloco de Esquerda que cometeu o que designa por "erro histórico de pensar que havia espaço para mais do que um partido catalisador do voto de protesto e do ressentimento". Já falei uma vez com o meu querido amigo José Manuel Pureza - uma pessoa admirável - sobre aquilo que me parecia uma evidência.
1. Estava o PS no poder a aplicar uma política de direita comandada pela Europa neoliberal.
2. A crise financeira mundial e europeia não dava muitas saídas neste momento.
3. Talvez fosse de tentar estabelecer alguns acordos pontuais com o PS - mesmo o de José Sócrates - que atenuassem o carácter feroz das políticas adoptadas pela Europa face aos países do Sul tenham governos de direita ou de esquerda. Com as aspas que quiserem.
Não foi possível e deste modo com as culpas mútuas do PS -pela maneira como governou no sentido que sabemos - e do PC e do Bloco o nosso país prepara-se para devolver o governo aos partidos de direita.
As perguntas a fazer são as seguintes:
1. Alguém espera no Bloco que a política do PSD e do CDS venha a ser menos gravosa para os pobres, os desempregados, a cultura, os cidadãos que pagam impostos, etc. - ou será com maior vigor e prazer que irão aplicar aquilo que é imposto de Bruxelas?
2. Há alguma hipótese de se verificar "o fim destas políticas" como clama o PC, depois das novas eleiçoes?
3. Ou, pelo contrário, tudo leva a crer que nas actuais circunstâncias, o que irá verificar-se será a continuação eventualmente agravada dessas políticas?
Porquê então este discurso?

Assim sendo verifica-se aquilo que penso já há uns dez anos: que a estupidez da esquerda só é superada pela hipocrisia da direita. (Concedo: a minha estupidez, para não ficar de fora)

É importante que haja partidos de esquerda que contestem este tipo de política, sem dúvida. Esse é o papel do PC. Mas seria igualmente muito importante que houvesse em Portugal partidos de esquerda que admitissem que "a revolução" não é amanhã (será alguma vez?) e que por isso há um certo tipo de acção que se poderia levar a cabo nessa perspectiva, pouco entusiasmante para os radicais, é certo, mas talvez indispensável para a existência de uma mera possibilidade de exercício do poder político nesta fase - com democracia parlamentar, com compromissos europeus que mais parecem ordens, com feroz ofensiva do capitalismo mundial global - que não estivesse apenas dependente da vida interna do PS. Com este tipo de acção, o Bloco entusiasma uma parte dos seus apoiantes mas não contribui para a criação de uma alternativa de poder da esquerda. Continuando assim a "esquerda" no poder, a esquerda capaz de exercer o poder em Portugal será sempre e apenas o PS. Ora como o PS tem uma clivagem interna entre os Tony Blair portugueses e alguns que podem (ou poderiam) tentar mudanças no quadro estreito que se apresenta do exterior, é mais do que provável que mais uma vez sejam os primeiros a vencer internamente com o argumento de que só assim conseguem ganhar eleições.
A esquerda à esquerda dá o poder à direita e sente-se bem com isso. Para mim é igual: pertenço à classe média que paga impostos e que ganha menos agora do que ganhava antes como muita gente. Pertenço há trinta anos - como quase todos os professores do ensino superior de música - àqueles que têm contratos a prazo e nem sequer tiveram alguma vez um horizonte diferente deste. As excepções que existem nesta profissão serão umas 20 pessoas no país todo. Mas sem esta classe média em geral, o capitalismo não funciona porque perde o que resta de consumidores potenciais e bloqueia. Nunca terei helicópteros nem Jaguares (aliás nunca quis, nem quero, ter esse tipo de vida) mas nem a direita pode prescindir da classe social a que pertenço.
Mas os pobres, os reformados, os pensionistas (ainda existem para já) aqueles que vivem no fio do arame da sobrevivência sempre, talvez agradecessem a alguém que colocasse as questões de acordo com aquilo que os pragmáticos americanos do início do século XX - J. Dewey, W. James, C. Peirce - nos ensinaram: as ideias filosóficas devem medir-se pelas suas consequências e não apenas pela especulação interna da disciplina encerrada na Universidade ou na publicação da especialidade, ou seja, de uma forma separada da realidade dos factos.
Julgo que essa oportunidade de que falou Boaventura foi perdida mais uma vez. Em todo o caso um abraço aos amigos que tenho no Bloco. Não estou de acordo simplesmente. Quando chegar a contagem dos votos veremos que preço eleitoral irão pagar. Penso que será alto.

Alguns desabafos de um homem sem qualidades sobre A Grande Desorientação

Tenho de confessar que estou cansado desta dupla epopeia que domina a vida política portuguesa nos media: primeiro, o confronto interminável entre Sócrates, Cavaco e Passos Coelho - que diabo, decidam-se por uma vez, se sim, se não - e o seu correlativo europeu, ajuda/não ajuda, os mercados "não reagem positivamente", o juro desce, o juro sobe, a "Europa" - actualmente uma ficção em implosão lenta e discreta - gosta das medidas, a "Europa" quer mais austeridade... Quando é que acaba esta outra história que já chateia toda a gente, menos ou que dela vivem, ou dela se alimentam, ou com ela enriquecem?

Escrevi há poucos dias que uma boa designação para este tempo seria A Grande Desorientação. Julgo que a Grande Desorientação deriva em grande parte do que alguns autores chamam "o actual período pós-político". Consiste no facto de a luta política ter como que desaparecido - na sua verdadeira acepção - face à dominação do económico que reduziu a política à administração do Estado e da sociedade em geral de acordo com as directivas -sempre as mesmas - que emanam dos países ricos: "a necessidade de reformas estruturais" eufemismo para a transformação do Estado em servidor dos interesses económicos e financeiros globais, as medidas "necessárias" o controle do défice externo, o PIB - indicador parcial que não traduz de modo nenhum o que de facto é "viver em sociedade", como é que realmente se vive, e menos ainda qual é o seu sentido, etc, etc, etc.

Gostava de conhecer os mercados pessoalmente. Não é possível. É uma entidade hiper-real, um quadro de acção virtual no qual circula o capital financeiro global, dotado de uma racionalidade (acumular mais capital) que realiza (aqui Marx teve razão) o lado auto-destrutivo e feérico do capitalismo. Os "mercados", agora à solta depois de três décadas em que os Estados legislaram a sua própria impotência - a famosa desregulação - e finalmente fazem o que lhes apetece com base em grande parte em mecanismos de especulação financeira.
O mercado não depende de ninguém, não é ninguém e, no entanto, milhares de pessoas no mundo inteiro são os agentes - indivíduos - que o fazem funcionar quotidianamente.

A luta política devia voltar a ocupar o seu lugar original: disputas entre diferentes modos de organizar a sociedade, entre visões do mundo muito ligadas à existência de classes sociais e ao seus lugares diversos nos aparelhos produtivos dos países - ao contrário de algumas notícias, as classes não acabaram e para ver isso basta sair à rua e olhar à volta. Vejo carros de luxo e outros a desfazerem-se, vejo trolhas e administradores ou gestores de empresas, vejo carpinteiros, garagistas, cabeleiras e top-models (sobretudo em cartazes), vejo cabo-verdianos e ucranianos nas obras, vejo gente de gravata e camisa às riscas - normalmente ao volante - vejo loiras esplendorosas - normalmente no lugar ao lado - e mulheres negras com frio, às 5 da manhã, quando chegam dos subúrbios para fazerem a limpeza das salas das empresas, vejo muitos sem-abrigo a dormir embrulhados em jornais encostados ao D.Maria, onde no interior tem lugar a grande arte - cada documento de cultura é também um documento de barbárie, dizia Walter Benjamin - e vejo ainda a antiga classe média a proletarizar-se progressivamente para sustentar com impostos os estados e o seu apoio às grandes empresas dos salários fabulosos e a banca (em crise) e os seus lucros (também fabulosos).
Posso aceitar que já não existe proletariado no sentido marxista do século XIX mas a existência de classes sociais atinge-me a retina violentamente todos os dias. Há classes sociais. Só não existe ainda uma teoria que nos permita compreender o estado do mundo. Daí nasce A Grande Desorientação.

terça-feira, 8 de março de 2011

Intermezzo. Sobre a circulação internacional das ideias, das teorias, das obras, à questão da tradução

Secção final do capítulo VIII de Música e Poder: para uma sociologia da ausência da música portuguesa no contexto europeu

Neste Intermezzo proponho-me abordar brevemente uma série de pontos relacionados com a circulação de objectos culturais de vária natureza entre diferentes países, diferentes línguas e diferentes culturas. Se a questão da tradução é, sem dúvida, central para esta problemática, não me parece que a problemática se reduza apenas à literatura. Como veremos, tudo aquilo que se prende com a passagem de um país para outro transcende a questão técnica e estética da tradução para chegar a conteúdos que, mesmo que não envolvam tradução linguística propriamente dita, se revelam como formas de incomunicabilidade potencial entre culturas. Existe a crença de que a vida intelectual é espontaneamente internacional. Ora, segundo Bourdieu, “nada de mais falso. A vida intelectual é o lugar, como todos os outros espaços sociais, de nacionalismos e imperialismos e os intelectuais veiculam, quase tanto como os outros, preconceitos, estereótipos, ideias recebidas, representações muito sumárias, muito elementares, que se alimentam de acidentes da vida quotidiana, de incompreensões, de feridas (aquelas que podem infligir ao narcisismo o facto de se ser desconhecido num país estrangeiro)” (Bourdieu, 1990: 1). Vimos com Lourenço como esta ferida narcísica tem sido fulcral para o olhar sobre si própria que marca fortemente a cultura portuguesa no seu todo. Bourdieu levanta de início dois aspectos diferentes: quando existe uma circulação, ela defronta preconceitos, estereótipos e representações que colocam vários obstáculos – diga-se, por vezes intransponíveis – mas, por outro lado, quando não existe circulação, o resultado é o puro desconhecimento. Na nossa temática verifica-se mais o segundo caso, um desconhecimento decorrente de localizações inamovíveis. Mas, face a estas análises, poder-se-á antecipar que uma circulação eventual da música portuguesa em maior escala não deixaria de encontrar os preconceitos, estereótipos e representações que constituem a “ideologia” do subcampo central da música contemporânea.
Na enunciação do problema, Bourdieu diz que “condições sociais da circulação internacional das ideias“ poderia ser dito “import-export intelectual”. Ao usar um vocabulário económico salienta que se produz sempre “um efeito de ruptura” na medida em que “descrevemos [as tendências das trocas internacionais] numa linguagem que deve mais à mística do que à razão”. Há, portanto, a necessidade de abordar a questão mais com a razão do que com a mística que habitualmente domina os discursos sobre o assunto. Bourdieu aponta “um certo número de factores estruturais que são geradores de mal-entendidos” sendo o primeiro “o facto de os textos circularem sem os seus contextos”... não transportarem consigo o campo de produção [...] do qual são produto” e, segundo, o facto de “os receptores, estando eles próprios inseridos num campo de produção diferente, os reinterpretarem em função do campo de recepção” (ibid.: 2).
Daqui poderá deduzir-se com alguma propriedade que, por exemplo, uma obra musical, independentemente das convicções – ou das crenças – do seu autor, contém em si o traço do seu campo de produção, mesmo que tenha sido composta sob a mística de que a circulação internacional da música, ainda mais do que a intelectual ou mesmo a artística, seja espontânea, dado o seu carácter “universal”. Tal como escreveu Bourdieu, “nada é mais falso”. Relativamente à recepção externa existe a convicção de que “alguém que é uma autoridade no seu país não transporta a sua autoridade consigo” e por isso a leitura estrangeira pode ter uma liberdade que não tem a leitura nacional, submetida a efeitos de imposição simbólica, de dominação ou mesmo de constrangimento”. Segundo Bourdieu, “é isto que faz pensar que o julgamento do estrangeiro é um pouco como o julgamento da posteridade. Se, em geral, a posteridade julga melhor, é porque os contemporâneos são concorrentes e têm interesses ocultos para não compreender e mesmo para impedir a compreensão [...] os estrangeiros têm, em certos casos, uma distância, uma autonomia em relação às condições do campo”. Apesar de estar a ter em conta um campo nacional, o autor considera que “as autoridades de instituição [...] passam bastante bem as fronteiras, porque há um internacional de mandarins que funciona muito bem” (ibid.: 3). Deste modo o autor relativiza e ultrapassa a sua questão mas, na verdade, continua a funcionar a crença generalizada na qualidade superior do julgamento do estrangeiro – e, como veremos, em Portugal funciona particularmente bem –, não apenas por ser mais livre, mais autónomo, mas porque, pura e simplesmente, está dotado de maior autoridade e mais bem cotado no mercado internacional de valorização e julgamento, o que pressupõe mais competência e qualificações do que o campo nacional. Em relação a Portugal este aspecto manifesta-se, segundo Lourenço, no facto de “citar um autor nacional, um contemporâneo, um amigo ou inimigo, porque nele se aprendeu ou nos revimos com entusiasmo [ser] entre nós uma raridade, uma excentricidade” (Lourenço, 1982: 76).
Há uma série de operações sociais na transferência de um campo nacional: “uma operação de selecção (o que é que se traduz? O que é que se publica? Quem traduz? Quem publica?); uma operação de marcação (de um produto previamente desmarcado) através da casa editora, da colecção, o tradutor e o autor do prefácio (que apresenta a obra apropriando-se dela e anexando-a à sua própria visão e, em todo o caso, à problemática inscrita no campo de acolhimento e que não faz senão muito raramente o trabalho de reconstrução do campo de origem, antes de mais nada porque é demasiado difícil); e, enfim, uma operação de leitura, os leitores que aplicam à obra categorias de percepção e problemáticas que são produto de um campo de produção diferente” (Bourdieu, 1990: 3). [133]
Face a estes vários problemas percebe-se que a ideia feita da independência, da autonomia do julgamento de valor feito noutros países não significa de modo nenhum uma saída dos constrangimentos dos campos. Interrogando-se sobre quem são os descobridores e quais os interesses que têm em descobrir, Bourdieu sugere que “aquilo a que cham[a] interesse será talvez o efeito das afinidades ligadas à identidade (ou homologias) das posições nos campos diferentes” e, mais adiante, que “a essas homologias de posição correspondem homologias de interesses e homologias de estilo, de partidos intelectuais, de projectos intelectuais. Pode-se compreender essas trocas como alianças”. Ao lado destas ligações entre “criadores” existem “clubes de admiração mútua, que me parecem menos legítimas porque exercem um poder de tipo temporal na ordem cultural [...] penso por exemplo na internacional do "establishment", quer dizer, todas as trocas que se instauram entre detentores de posições académicas importantes”. Para Bourdieu “há traduções que não podem ser compreendidas senão forem recolocadas na rede complexa de trocas internacionais entre detentores de posições académicas dominantes, trocas de convites, de títulos de doutores honoris causa, etc.” (ibid.: 5). Estas serão formas que a internacional do establishment adquire. Existem “lutas internacionais pela dominação em matéria cultural” na opinião do autor ligadas “às lutas no seio de cada campo nacional, no interior das quais a definição nacional (dominante) e a definição estrangeira são postas em jogo” (ibid.: 8). Se uma análise destes aspectos se deve dirigir para o campo nacional em Portugal, é uma evidência que os mesmos factores operam nos outros países.
Noutro texto Bourdieu reclama “uma compreensão sociogenética das obras intelectuais” contra as “incompreensões relacionadas com a circulação internacional das ideias” (in Calhoun C. et al, 1993: 263-275). Deste modo, se considerarmos as obras musicais quando viajam igualmente sem os seus contextos, estamos no domínio daquilo que na ontologia musical de Roman Ingarten se designa por “recepção” [134] e na sociologia de Adorno se designa por “consumo” [135] , ou seja, a forma como uma peça musical é recebida quando executada fora do seu contexto original. Ora Bourdieu sublinha as enormes possibilidades de recepção errónea: “as categorias de percepção e interpretação que os leitores lhes [às obras] aplicam, estando elas próprias ligadas a um campo de produção sujeito a tradições diferentes, tem todas as possibilidades de serem mais ou menos inadequadas” (ibid.: 263) na medida em que “o que é ignorado, propositadamente ou não, é a questão do modo de produção intelectual que estrutura a [minha] investigação”. Propõe contra essa inadequação “a implementação do princípio de flexibilidade” para pôr em prática o internacionalismo que a ciência pressupõe e promove” (ibid.: 264). Lois J. D. Wacquant (1993) afirma que é claro que as estruturas dos campos intelectuais nacionais actuam como mediações cruciais no comércio estrangeiro de teorias. O autor sugere “que o [campo] do país exportador molda formativamente o conteúdo e a constituição do produto; o [campo] do país que recebe de uma forma prismática que selecciona e refracta os estímulos externos de acordo com a sua própria configuração (ibid.: 246). [136]
Na sequência da sociologia das ausências e da sociologia das emergências, que aumentam o número e a diversidade das experiências disponíveis e possíveis, Boaventura de Sousa Santos, propõe o trabalho complementar da tradução que visa criar “inteligibilidade, coerência e articulação num mundo enriquecido por multiplicidade e diversidade”, mas sublinha que se trata de um trabalho intelectual e político mas também emocional porque pressupõe o inconformismo perante uma carência decorrente do carácter incompleto ou deficiente de uma dado conhecimento ou de uma dada prática; para o autor as ciências sociais convencionais, e o seu fechamento disciplinar “significou o fechamento da inteligibilidade da realidade investigada” e a redução dela “às realidades hegemónicas e canónicas” (Santos, 2006a: 119-120).
As posições de George Steiner, embora concentradas na tradução stricto sensu, podem ser alargadas de acordo com esta problemática. Para Steiner, “a tradução está implícita em todos os actos de comunicação, a emissão e a recepção de cada um e todos os modos de significação, seja no mais largo sentido semiótico ou nas mais específicas trocas verbais. Compreender é decifrar. Ouvir significação é traduzir. Por isso os meios e problemas essenciais estruturais e executivos do acto de traduzir estão completamente presentes nos actos da fala, da escrita, da codificação pictórica no interior de uma dada língua” (Steiner, 1998: xii).
Esta poderosa declaração está presente, explícita ou implicitamente, noutros textos do autor. No artigo “O que é a literatura comparada” de 1994 afirma: “todo o acto de recepção de uma forma significante, na linguagem, na arte, na música é comparativa [...] procuramos compreender, ‘colocar’ o objecto perante nós – o texto, o quadro, a sonata – dando-lhe o contexto inteligível e informante de experiências prévias e relacionadas. Olhamos intuitivamente para análogas e precedentes, para os traços de uma família (por isso familiar) que relacionam a obra que é nova para nós com um contexto reconhecível.” Mais adiante escreve: “Interpretação e julgamento, mesmo se espontâneos na linguagem, mesmo se provisórios e até disparatados, provêm de uma câmara de ressonância de pressupostos e de reconhecimentos históricos, sociais e técnicos” (1996: 142). Aquilo que Steiner aqui sublinha é o facto de termos tendência para esquecer facilmente quanto as nossas avaliações ou julgamentos de valor sobre obras de arte e peças musicais são determinadas pelo nosso conhecimento localizado ou pela nossa experiência particular. Mesmo quando, em teoria, recusamos universais, quando defendemos a presença dialéctica no interior das próprias obras de arte de determinações ou manifestações dos contextos sociais, económicos ou políticos, somos muitas vezes incapazes de reconhecer que o nosso contacto e conhecimento é parcial, que é parcial e incompleta a nossa capacidade de interpretação do significado total depositado e, por isso, proposto, pela obras de arte que transportam consigo um certo estranhamento ou provocam um efeito de falta de familiaridade. Quando o familiar se torna estranho o pensamento é obrigado a confrontar-se com a alteridade radical, perde certezas. É por isso que Steiner considera a tradução entre diferentes línguas como sendo “uma aplicação particular de uma configuração e modelo fundamental para a fala humana mesmo quando é monoglota” (1998: xii). Para além dos factores sociais, económicos e políticos que afectam a tradução ou, num sentido mais lato, a circulação de obras de arte (literatura, pintura, música, etc.), podemos perguntar: até que ponto poderá uma linguagem natural depositar estruturas de pensamento – tão particulares e específicas como qualquer língua – na música (na sua forma, nas suas figuras, na sua própria estrutura)? Uma língua não é apenas uma língua: “Cada linguagem humana traça o mundo de forma diferente. [...] Cada língua – e não há línguas pequenas ou menores – constrói um conjunto de mundos possíveis e de geografias de memórias” e desse modo “quando uma língua morre, com ela morre possivelmente um mundo. Não existe a sobrevivência dos mais aptos. Mesmo quando é falada por um punhado de teimosos sobreviventes de comunidades destruídas, uma língua contém em si um potencial imenso de descoberta, de recomposições da realidade, de sonhos articulados que são conhecidos por nós como mitos, como poesia, como conjectura metafísica e como discurso da lei. Inerente a After Babel, está o desaparecimento acelerado de linguagens por todo o mundo, a soberania detergente das chamadas línguas maiores cuja dinâmica eficácia tem a sua origem no alargamento planetário do marketing de massas, da tecnocracia, e dos media” (Steiner, 1996: 196). A este processo chamam muitos autores globalização. Para Steiner, “o inglês e o inglês americano têm atingido rapidamente o estatuto de verdadeira língua mundial”. Mas, por outro lado, “ser um escritor numa língua ‘menor’ é um "complex fate". Não ser traduzido, e especificamente, não ser traduzido para inglês é correr o risco de ser extinto. Romancistas, autores teatrais, mas até poetas – esses guardiões eleitos do irredutível autónomo – sentem isto dolorosamente. Têm de ser traduzidos para as suas obras, para as suas vidas virem a ter a hipótese legítima de chegar à luz” (ibid.).[137]
Estamos perante uma problemática completamente afim da problemática da ausência da música portuguesa, não obstante não ser a língua inglesa a assumir o papel de língua franca no campo musical. O seu equivalente no contexto europeu é o subcampo contemporâneo dos países centrais da Europa. Para Steiner, esta necessidade – a necessidade de existir – inspirou diversas tácticas que têm os seus correlativos na música. Desde os autores que escrevem os seus livros na língua nativa e em World-English, até aos que orientam as suas obras para o mercado dos países de língua inglesa e aos que “adquirem visibilidade como tradutores dos seus rivais ingleses ou americanos”. Encontramos aqui um exemplo impressionante da infiltração do contexto, da condição local específica do artista no interior dos próprios textos. Segundo Steiner, muitas vezes as escolhas das obras a traduzir resultam de circunstâncias fortuitas: um encontro casual [138], um movimento monetário do agente, um negócio de um pacote por isso “é a roleta da tradução para anglo-americano que marca muito largamente a actual paisagem da eminência e resposta literária”. Como exemplo desse carácter fortuito o autor refere o caso de obras de primeira classe que “por mera falta de sorte não encontraram tradutores”.
Refere ainda que “a presença nos Estados Unidos de um pequeno grupo de tradutores talentosos e produtivos do espanhol foi decisiva para dar à ficção e ao verso latino-americano a sua recente incandescente elevação. Concomitantemente a relativa pequenez de tradutores do português significou que o romance brasileiro tenha ficado largamente desconhecido” (ibid.: 199). Para o leitor Steiner, tal como para uma grande parte do mundo, uma comunidade literária permaneceu silenciada durante muito tempo, por não ter passado o clube mundial da publicação e da recepção anglo-americana. Deste modo aumenta a responsabilidade do tradutor inglês ou americano.
É um desafio e uma árdua tarefa analisar no campo musical este tipo de funcionamentos – de hegemonias, de lutas de capital simbólico – do ponto de vista de um pequeno país europeu, analisar os efeitos das viagens das obras musicais, as consequências do desaparecimento do seu contexto face aos preconceitos associados aos modos de produção dos países onde tem lugar a recepção. O desaparecimento do contexto está presente de uma maneira ou de outra. O que isto quer dizer é que a ideia corrente – embora desacreditada – de que a música é uma linguagem universal continua a ser capaz de obnubilar qualquer tentativa de considerar a sua localização de origem como uma factor tão merecedor de ser analisado como a localização de uma ideia, uma teoria, um romance. É a ausência das palavras – o que em qualquer caso só se verifica na música instrumental – que lança sobre as músicas locais uma espécie de indefinição em relação ao seu lugar de pertença. Mas, como vimos, muitos dos aspectos que Steiner e Bourdieu referiram aplicam-se directamente a todos os campos artísticos ou intelectuais.
Uma das armadilhas que a persistente predominância da ideia da universalidade provoca é a consideração de que a música, por um estranho e milagroso processo, seria a única actividade humana que surgiria à partida como “natural”, como “espontaneamente internacional” e sem vestígios do mundo que cada língua – a linguagem como lugar do pensamento – transporta consigo, a única actividade humana que não seria um produto de certas condições históricas, sociais e económicas. [139] A universalidade associada à ideia da música – uma linguagem universal que, pelo seu grau de abstracção, é capaz de estabelecer uma comunicação independentemente da condição específica dos receptores – faz parte de “uma cosmovisão que é imposta como explicação global do mundo anulando a possibilidade de complementaridade entre saberes” (Santos et al. 2004: 28). Outra aspecto da armadilha é ignorar que essa ideia de universalismo não passa de um localismo globalizado, ou seja, um processo pelo qual determinado fenómeno local é globalizado com sucesso. Neste sentido, a música europeia olha-se a si própria como universal mesmo quando admite que existem outras músicas no mundo, na medida em que as desqualifica de algum modo. Neste quadro, no campo musical existe uma forte tendência para considerar qualquer problemática desta natureza como relevando da esfera individual. Na verdade, compositores e músicos tendem a actuar individualmente para concretizarem as suas aspirações. Muitas vezes essa acção resulta num exílio cultural pessoal, numa emigração para outros países. Esta opção é certamente válida do ponto de vista individual e continuará a sê-lo no tempo futuro. Mas esta investigação não versa a questão do exílio cultural – nem um certo prestígio que lhe está associado – nem a emigração cultural como uma forma de solução individual para cada caso a não ser na medida em que isso informa a questão que estamos a abordar, ou seja, a análise de uma comunidade que tem certas características comuns: o país, a nacionalidade, a localização e o trabalho no país de origem. É justamente quando as condições de vida profissional ou intelectual são duras que surge a expressão, tão corrente em Portugal, de “exílio no próprio país”. Mas outros países periféricos europeus sofrem problemas similares.
No seu ensaio Os Testamentos Traídos, de 1993, Milan Kundera escreve: “Este conceito não é quantitativo; designa uma situação; um destino: as pequenas nações não conhecem a sensação feliz de estarem lá [être là] desde sempre e para sempre; passaram todas, neste ou naquele momento da sua história, pela antecâmara da morte; sempre confrontadas com a arrogante ignorância dos grandes, vêem a sua existência perpetuamente ameaçada ou posta em causa; porque a sua existência é uma questão” (Kundera, 1993: 225). O escritor refere-se sobretudo às nações da Europa central que chegaram à sua independência no século XIX, como a sua. Por isso afirma: “Janacek e Bartók participaram com ardor na luta nacional dos seus povos” e que “esse é o seu lado século XIX: um sentido extraordinário do real, uma ligação às classes populares, uma relação mais espontânea com o público; estas qualidades, então desaparecidas na arte dos grandes países, ligaram-se com a estética do modernismo num casamento surpreendente, inimitável, feliz” (ibid.: 226). No entanto, prossegue de uma forma que é transponível para todas as nações pequenas: “Dissimuladas atrás das suas línguas inacessíveis, as pequenas nações europeias (a sua vida, a sua história, a sua cultura) são muito mal conhecidas; pensa-se naturalmente que aí reside o handicap principal para o reconhecimento internacional da sua arte”. Para Kundera é o contrário que se verifica: “esta arte tem esse handicap porque todo o mundo (a crítica, a historiografia, tanto os compatriotas como os estrangeiros) a cola à grande foto de família nacional e não a deixa sair de lá” (ibid.: 227).
Kundera refere os escritores que “passaram uma grande parte da sua vida no estrangeiro, longe do poder familiar” como Ibsen, Strindberg, Joyce. Mas continua: “Para Janacek, patriota cândido, isso seria inconcebível. Por isso, pagou.” Sobre o compositor checo escreve mais adiante: “nenhum estudo musicológico importante analisando a novidade estética da sua obra foi escrito pelos seus compatriotas até hoje. Não existe nenhuma escola influente da interpretação janacekiana que pudesse tornar a sua estranha estética inteligível ao mundo. Não existe estratégia para fazer conhecer a sua música. Não existe edição completa em discos da sua obra. Não existe edição completa dos seus escritos teóricos e críticos. E, no entanto, esta pequena nação nunca teve nenhum artista maior que ele” (ibid.).
Kundera regressa à mesma temática no seu livro A Cortina, de 2005, onde escreve: “quer seja nacionalista ou cosmopolita, enraizado ou desenraizado, o cidadão europeu vive sempre profundamente determinado pela sua relação com a sua pátria” e considera que “a problemática nacional é, na Europa, plausivelmente mais complexa e mais séria do que é geralmente aceite”. Kundera afirma que “ao lado das grandes nações existem na Europa pequenas nações” e, por isso, defende o seu ideal europeu como “o máximo de diversidade num mínimo de espaço” (Kundera, 2005: 33). O funcionamento do subcampo musical contemporâneo caracteriza-se inversamente, na minha perspectiva, por um mínimo de diversidade num máximo de espaço.
Comentando o facto de em França se ouvir Kafka habitualmente referido como escritor checo, apesar de ter escrito em alemão e se considerar um escritor alemão, pergunta: “tivesse ele escrito em checo, quem o conheceria hoje? Nenhum dos seus compatriotas (quer dizer, nenhum checo) teria tido a autoridade necessária para dar a conhecer ao mundo aqueles extravagantes textos escritos na língua de um país longínquo “of which we know little” (ibid.: 35).[140] Na divulgação de obras de arte, como Bourdieu nos ensinou, há sempre uma questão de autoridade implicada na acção dos agentes do campo. [141]
Para Kundera há duas formas relacionadas de provincianismos. O primeiro traduz-se pela incapacidade de encarar a própria cultura no contexto global. As pequenas nações, para o autor, são hostis ou reticentes ao contexto global, porque, apesar de terem uma grande estima pela cultura global, esta aparece-lhes como uma coisa inacessível, distante, como uma realidade ideal com a qual a sua literatura nacional tem pouco a ver. Por outro lado, o provincianismo dos grandes países é, para Kundera, a incapacidade de considerar a sua cultura no contexto mundial; uma espécie de auto-absorção, de auto-encantamento que caracteriza uma cultura central para a qual todas as outras olham e admiram. Este duplo provincianismo manifesta-se em Portugal de forma patente: “o doloroso sentimento com que cada português vive de não ter ao seu alcance aqueles múltiplos e esplendorosos espelhos em que as culturas privilegiadas se podem rever de um só golpe e em corpo inteiro” (Lourenço, 1982: 76). Muitos outros artigos de Eduardo Lourenço levantam hipóteses em relação à cultura portuguesa em particular relativamente à sua relação de fascínio, de quase fixação, na cultura francesa. Por outro lado, aquilo a que Boaventura de Sousa Santos chama “o trabalho da tradução” pode ser visto igualmente como uma tarefa sociológica contra estas duas formas de provincianismo, como um dispositivo que procura retirar as diversas expressões culturais do silêncio a que o funcionamento desigual dominante as condena.
Tal como afirma Bourdieu, o cientista social procura dizer o mundo tal como ele é. No entanto não pode inventá-lo apenas porque suspeita que ele existe. À suspeita chama-se hipótese de trabalho. A verificação de que o mundo é assim ou não chama-se confirmação ou desmentido das hipóteses. Ao resultado final chama-se ciência social.

NOTAS
133. Sobre os problemas e as condições que presidem ao trabalho da tradução, no sentido amplo que propõe, ver Santos (2006a: 120-125).
134. Cf. Ingarten, (1989).
135. Cf. Paddison, (1993) e Adorno, (1998).
136 Para Wacquant, estes factores interagiram para tornar difícil aos anglo-americanos conseguir uma compreensão total da estrutura e significado global da sociologia de Bourdieu. Numa nota de pé de página o autor acrescenta que a mutação transatlântica de Foucault demonstra este processo ainda melhor do que o de Bourdieu. O Foucault construído pelos académicos americanos atraídos pelas suas teorias é virtualmente um autor diferente do francês (ou europeu).
137. Já na fase da revisão final deste trabalho um texto de António Guerreiro, publicado no Expresso (Actual, 31 de Dezembro de 2009, p. 19) prolonga as reflexões aqui apresentadas referindo-se “[à] circulação transnacional de produtos literários, nomeadamente uma world fiction de fácil, rápida e larga difusão” que “abafa e reduz o espaço […] outrora dedicado à literatura nacional. […] tudo que faz parte da literatura nacional é remetido a uma espécie de clandestinidade, em todas as instâncias”. E, mais adiante, afirma que o “género” da entrevista ao escritor “deve a sua sobrevivência, quase exclusivamente a entrevistas a escritores estrangeiros. Ou – o que significa o mesmo – concentrou-se nos dois escritores nacionais que estão cotados nessa bolsa internacional de valores literários: António Lobo Antunes e José Saramago”.
138. Cf. com a descrição de Helène Borel sobre o encontro entre Nunes e um editor da Jobert em Paris em 1970 (Borel, 2001: 34).
139. Vimos no capítulo IV, “O cânone musical ocidental e a sua contestação”, o estado actual dos debates e da crítica no campo musicológico à ideia tradicional de universalidade e a análise do seu papel enquanto elemento constitutivo do cânone musical da música erudita europeia.
140.Em inglês no original.
141. Cf. as posições de José-Augusto França no capítulo VI deste trabalho