domingo, 7 de julho de 2013

Eurocentrismo nas Histórias da Música

Eurocentrismo nas Histórias da Música in Música e Poder: para uma sociologia da ausência da música portuguesa no contexto europeu, (Almedina: 2011: 95-99)
O meu argumento é o de que, do mesmo modo, a master narrative História da Música, mesmo na versão mais actualizada pela hermenêutica da suspeição de Richard Taruskin, “A História da Música Ocidental”, ao constituir-se como uma narrativa canónica indiscutível, faz que uma história como a “História da Música Portuguesa” (ou de qualquer outro pais periférico europeu) seja igualmente uma variação sobre a grande narrativa, quer seja um comentário paralelo, quer tome a forma de uma descrição paralela à História da Música Ocidental – central ou canónica – da qual, como veremos, Portugal está praticamente sempre ausente. O facto de a história da música portuguesa, indubitavelmente subalterna – talvez a mais claramente subalterna de todos os países europeus –, não existir até hoje no quadro da grande narrativa, senão muito residualmente e apenas em certos casos, não só atesta essa subalternidade, como é óbvio, como também conduz a narrativa local para o carácter difuso e descontínuo de uma história cheia de hiatos, de desaparecimentos, na qual se vão (d)escrevendo – em paralelo com a narrativa principal – as aproximações e os distanciamentos, os atrasos ou os desvios em relação à grande narrativa que permanece como a referência omnipresente (44).
As Histórias da Música Portuguesa existentes descrevem-nos (também) o destino da polifonia renascentista, a emergência do barroco italiano, a supremacia do classicismo vienense em relação à ópera italiana, o surgimento de um primeiro nacionalismo em meados do século XIX, seguido de um segundo nacionalismo a partir do início do século XX, a preponderância repentina da Escola de Darmstadt a partir de 1950 e o aparecimento das primeiras reacções pós-modernas. Por maiores que tenham sido os desfasamentos temporais, as incorporações tardias e os atrasos estilísticos da narrativa subalterna portuguesa, esta constrói-se, produz-se, à luz da grande narrativa e vê-se no seu espelho. O espelho narrativo com as suas deformações côncavas ou convexas só adquire inteligibilidade se interpretado à luz da narrativa europeia que pode sempre iluminar os caminhos, esclarecer as dúvidas e (re)focalizar as distorções.

A música portuguesa acaba por se descrever como o resultado de uma espécie de colonialismo interno, sobretudo a partir do século XVI, através do qual a metrópole europeia exportou as suas correntes sob a acção de agentes locais de actualização sucessiva. Tal como afirma Richard Taruskin, no século XIX, “todos os conservatórios dos países de língua não-alemã se configuraram com agentes coloniais da música alemã”. (45) Em Portugal foram-se sucedendo as metrópoles específicas nos diversos períodos estilísticos – Roma, Nápoles, Paris, Londres, Berlim, Paris novamente – sendo de considerar que a própria história canónica possui uma forte componente geográfica, no sentido de terem sido vários os seus centros durante o milénio da sua existência. Mesmo em determinados períodos históricos – e foram vários em Portugal – nos quais a substituição de uma tendência por outra não acompanhou os “progressos” realizados na Europa do centro, a narrativa local não consegue olhar os seus produtos, as suas obras realmente produzidas, sem mergulhar na perspectiva inevitavelmente crítica (e subalterna) a que a comparação sistemática com os outros conduz. Essa perspectiva é comandada por uma noção temporal linear que não contempla os diferentes espaços específicos de enunciação, nem consegue esquecer, não considerar como ponto de referência obrigatório, o que se verificava no centro, na “metrópole”. Hoje a narrativa canónica está em crise, sob suspeita e procura questionar-se sobre as exclusões que produziu enquanto o cânone se constituía como tal. Por isso, os musicólogos críticos do cânone interrogam, por exemplo, a ausência das óperas napolitanas de Rossini do cânone no qual esteve durante largo tempo presente com apenas duas outras óperas. (46)
O espelho está sempre presente mas por vezes está deformado pelas ideias hegemónicas do período moderno: a narrativa habitual das dificuldades de Bomtempo em introduzir em Portugal as formas clássicas vienenses face à predominância do gosto pela ópera italiana parece não ter em conta que Rossini era contemporâneo de Beethoven, mesmo sem ter em conta que a história da autoria Raphael Georg Kiesewetter, publicada na Alemanha em 1834, tinha como titulo A época de Beethoven e Rossini (cf. Taruskin, 2005, Vol. 3: 7).
É a leitura ideológica reconstrutiva que se segue historicamente que retira Rossini do lugar que, mesmo no país de Beethoven, lhe era atribuído ainda em meados do século XIX. Ou seja, neste tipo de consideração existe, na maior parte das histórias da música portuguesa, ou em artigos sobre ela, uma aceitação da leitura reconstrutiva levada a cabo pela história canónica escrita sob a supremacia alemã durante do século XIX – mesmo que por historiadores de outros países – segundo a qual as formas clássicas vienenses representavam a “Europa” enquanto as óperas italianas foram relegadas para o “atraso” vernacular.
Enquanto o mundo musical de hoje vai assistindo à recuperação de obras “caídas no esquecimento”, vai realizando estreias modernas de obras há séculos não executadas – inclusivamente em Portugal – a musicologia portuguesa prossegue a sua análise do passado e, apesar do trabalho já realizado na reconstituição de versões modernas, só recentemente há indícios de reflexões em torno da questão de fundo. Não se pode ignorar a hegemonia anterior, ela própria um facto histórico, mas deve-se igualmente problematizá-la e, sobretudo, produzir um discurso sobre as obras para além da verificação do atraso comparativo. Na sala de concertos a percepção sensivel das obras não o considera como modo de apreciação. (47) Verifica-se uma gradual mas muito lenta aparição nas salas de concertos de obras portuguesas, editadas pela Fundação Calouste Gulbenkian a partir da década de 1960. Tendo estado elas próprias “esquecidas” e ausentes dos concertos durante longos períodos, este processo corresponde às estreias modernas de obras do passado.
A primazia e a persistência do espelho manifesta-se em vários períodos. Assim, encontramos a predominância do antigo vilancico ibérico até ao reinado de D. João V, através da absorção de elementos novos, por vezes com componentes directamente “exóticas”, provenientes do colonialismo português, incluindo a participação de figuras como o negro, o judeu, o escravo, em espectáculos originalmente religiosos, no que hoje se designaria por multiculturalismo. O vilancico e a sua forma foi-se progressivamente tornando barroco, (47) até ao momento de corte instituído pelo monarca através da adopção dos modelos do barroco italiano, da contratação massiva de músicos italianos e da atribuição de bolsas de estudo para os jovens compositores portugueses irem para Roma actualizar-se na nova corrente. (48) Do mesmo modo, a resistência dos compositores portugueses “neoclássicos”49, como Joly Braga Santos e Fernando Lopes-Graça, em aderir aos novos princípios provenientes de Darmstadt após 1960, é paradoxalmente analisada face à emergência em Portugal de um forte grupo de compositores que frequentam esses cursos e aderem à sua estética, não tendo em conta que, noutros países, compositores como Poulenc, Benjamin Britten ou Chostakovitch continuaram a compor independentemente da recente supremacia simbólica e depois prática do serialismo. Os neoclássicos portugueses são vistos como tardios à luz de uma narrativa hegemónica que actualmente começa a ser contestada nos próprios países que a produziram. Mais uma vez se manifesta por parte quer de historiadores, quer da opinião corrente de senso comum, uma perspectiva que se alicerça na eleição do elemento “progressivo” europeu numa dada corrente, em detrimento da própria existência contemporânea na Europa de idênticas orientações, vistas como elemento regressivo e, desse modo, como inexistente ou irrelevante.(50)
Esta perspectiva analítica é claramente devedora de uma concepção hegeliana teleológica da história, e da história da música, da evolução da linguagem musical numa certa direcção forçosamente obrigatória. Essa concepção, aliás, era fortemente utilizada nos argumentos progressivos dos seus adeptos, como Adorno, Leibowitz, Boulez e outros, e ainda hoje faz sentir os seus efeitos na crítica, no ensino e, em certa medida, nas orientações de instituições culturais. O problema principal deste colonialismo interno, alicerçado no passado canónico, será ter-se tornado uma característica de tal modo interiorizada no campo musical em Portugal que os discursos que lhe dão consistência e fixidez acabaram por se reproduzir em épocas sucessivas e por marcar, ainda hoje, as práticas institucionais que regulam a vida musical no país. A primazia da narrativa linear, assente em concepções do progresso, de desenvolvimento da linguagem musical vista de uma forma teleológica, como várias outras formas de pensamento linear hoje altamente questionadas em todas as áreas, produziu narrativas da história da música portuguesa que devem ser, por isso, reexaminadas. Mas, tal como outras áreas, a musicologia feita e escrita em Portugal confronta-se com a musicologia universitária hegemónica. Onde reside essa cultura universitária, quais são os países e as línguas onde vigora a "culture of scholarship" universitária na qual se baseia a produção do eurocentrismo? Para Mignolo, Chakrabarthy, Dussel e Santos, as línguas da cultura universitária moderna – the languages of scholarship – são o inglês, o francês e o alemão. O mesmo se verifica no campo da musicologia.

António Pinho Vargas, in Música e Poder (Almedina, 2011:95-99)

NOTAS
44. Todo este ponto poderá, para alguns leitores, reclamar talvez a leitura prévia da Parte III deste trabalho. A sua inclusão neste capitulo deriva da necessidade de colocar esta problemática em paralelo com as posições de Chakrabarthy. No entanto para os membros do meio musical tal não será necessário uma vez que o discurso aí dominante é conhecido.
45. In “Nationalism”, Grove on line, 2001. Manuel Pedro Ferreira interpelou-me sobre este aspecto afirmando que, em Portugal, apenas no fim do século XIX o modelo alemão se sobrepôs ao francês no Conservatório Nacional. Esta observação, se é importante em si, não muda o essencial relativamente à supremacia da música alemã durante o século XIX no mundo, nem à mudança das várias metrópoles centrais ao longo dos tempos. Cf. Capítulo X, 2.7.5 e seguintes.
46. Ver Gosset, Phillip, “History and works that have no history: reviving Rossini’s neapolitan operas” in Bergeron e Bohlman (1996: 95-115).
47. Caso contrário o melómano informado seria obrigado a ouvir as obras tardias de Bach como “atrasadas” em relação ao seu tempo. A descrição canónica posterior retirou-lhe essa característica – historicamente verdadeira – substituindo-a pelos discursos da “intemporalidade” canónica.
48. Cf. Nery (1997: 91-102).
49. Esta designação, aliás entre aspas, é aqui usada por razões de simplicidade argumentativa. Não quero entrar na discussão da modernidade (ou não) destes compositores. Tal como em Britten e Chostakovitch fará mais sentido falar em tonalidade expandida, mas esta é uma questão técnica demasiado específi ca para se justifi car neste livro o seu desenvolvimento.
50. A questão Peixinho/Lopes-Graça será um exemplo deste aspecto. Cf. Capítulo XI 6.1.

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