domingo, 15 de dezembro de 2013

Pensar as artes: a música (parte II)

As profundas transformações que ocorreram no século XX, obrigam-nos a revisitar alguns textos da primeira metade do século XX e usar alguns conceitos que nos permitem medir o alcance profundo das alterações. No seu agora celebrado ensaio A arte da era da sua reprodutibilidade técnica, Walter Benjamin não trata a música. Concentra-se nas artes que mais notoriamente eram, na época, devedoras da produção e reprodutibilidade técnicas: a fotografia e o cinema. O facto de não incluir a música nas suas reflexões não foi uma lacuna da análise, mas um sintoma de que o impacto dos meios reprodução técnica da música estava ainda nos seus primórdios. É hoje claro que esse impacto ganhou gradualmente importância ao ponto de o musicólogo Philip Bohlman poder afirmar, nos anos 90, que a gravação "alterou todas as ontologias da música". O primeiro fator de mudança, que se revelou de grande importância pode ser designado, tal como o fiz num ensaio publicado em 2002 como alterando os suportes históricos de sobrevivência. O facto de hoje podermos ouvir música da tradição erudita europeia de 1200 deriva, acima de tudo, da invenção da escrita musical, cerca do ano 1000, que evoluiu gradualmente e permitiu especialmente no século XIX a criação da prática nascente de repetição do repertório do passado. Foi a escrita musical que serviu à música dessa tradição escrita de suporte histórico ao longo do tempo. Há outras civilizações do mundo que possuiram modos de notação diversos mas em nenhum outro lugar a escrita musical teve um tal desenvolvimento. Ao mesmo tempo as músicas das muitas tradições orais, não tendo esse suporte e transmitindo-se de pais para filhos por esse meio - semelhante ao do "contador de histórias" - tiveram uma evolução muito mais lenta, que apenas podemos imaginar, uma vez ausente na maior parte dos casos qualquer suporte histórico de sobrevivência que não descrições ou representações pictóricas. Nesse sentido podemos dizer que enquanto a música europeia da tradição erudita, ou literata, como a designa Richard Taruskin, sublinhando a existencia crucial da leitura do escrito como veículo. tem história e documentos, as práticas musicais populares de tradição oral na Europa e as de outras culturas do mundo, algumas dotadas de sistemas de notação menos desenvolvidos, não tiveram história nesse sentido.

Não é este no entanto o objeto principal deste escrito. Pelo contrário é justamente o impacto do novo suporte gravado na própria vida musical que se reclama da escrita, o seu impacto transformador que produziu hierarquias de um novo tipo. A definição clássica de melómano seria a de um frequentador de concertos. Como saberemos até c.a. 1900 não haveria música se não houvesse músicos a tocar. Era uma condição necessária e insubstituível, fosse qual fosse o seu meio de transmissão oral ou escrito. A partir sobretudo de 1950 a importância da gravação não parou de aumentar. Para além das músicas populares de todos os matizes, das músicas de todas as civilizações não ocidentais, também músicas novas que se iniciaram quase em paralelo com o início da gravação como o jazz, no início do século, até ao pop/rock. Neste processo global, deteta-se uma progressiva importância da gravação como registo fundamental na próprio interior da música erudita. Este modo de produção obrigou a uma inversão das prioridades neste campo. Em meados do século a gravação de uma nova versão de sinfonias de Beethoven, por hipótese, tinha lugar no final de uma tournée de concertos. Atualmente, segundo Antoine Hennion, as gravações e a edição dos discos têm lugar antes das tournées e servem-lhe de ponto de partida, adotando por isso as mesmas práticas de divulgação correntes no jazz e no rock/pop já em plena hegemonia global.

Surge deste modo um novo tipo de melómano, o colecccionador de discos - que todos seremos em maior ou menor grau - que nem sempre é totalmente concomitante com o frequentador de concertos, o melómano original digamos. Criou-se assim um novo tipo de relação com a música que hoje será amplamente dominante. Hennion realça o facto deste novo tipo de ouvinte poder criar, na casa de cada um, um mundo sonoro particular, derivado das escolhas privadas do sujeito, que pode até não corresponder às categorias tradicionais nas quais se dividem as práticas musicais (e os lugares) no quadro das instituições culturais.

Importa no entanto dar um passo atrás e tratar a ontologia com que Ramon Ingarten, discípulo de Husserl, procurou responder à pergunta "O que é uma obra musical?, título do seu livro de 1933. Resumindo em extremo o complexo livro tomarei apenas as quatro condições essenciais para que, na perspetiva de Ingarten, exista uma obra musical: o criador, a partitura, a interpretação e a receção. O tempo obriga a alterar estas categorias em certos géneros musicais. Na música eletrónica, de um modo geral, não há nem partitura tradicional, nem interpretação, se não considerarmos o difusor sonoro um intérprete. Mas na música da tradição escrita, tanto histórica como do nosso tempo, estes quatro fatores continuam válidos. Que diferenças encontramos face à nova situação tecnológica atual? A supremacia quantitativa indiscutível dos colecionadores de discos, a presença no quotidiano da música gravada e uma série de consequências derivadas alteraram os hábitos sociais de escuta. Gostaria no entanto de referir alguns pontos de diferença que talvez não sejam totalmente evidentes. Em primeiro lugar, parto de um exemplo particular para chegar ao equívoco que interessa interrogar e contestar. Há alguns anos um escritor e filósofo, ligado ao estudo da antiga Grécia, declarou a propósito de uma das Festas da Música do CCB o seguinte, que cito de memória: "Porque é que hei de ir assistir a um concerto ao CCB se tenho em casa as Variações Golberg pelo Glenn Gould?". Deste tipo de frase, de que todos já teremos ouvido inúmeras vezes, julgo poder retirar várias conclusões. A música é uma arte viva, performativa e a partitura, estando disponível, permite à obra ter a possibilidade de eterno devir sempre em aberto. Mesmo no caso de uma gravação, no momento em que é ou foi feita, independentemente das metodologias de gravação empregues, implicou necessáriamente que a obra fosse tocada no todo ou em partes. Ou seja, para resumir, uma "interpretação de referência", uma expressão típica dos críticos de discos, por genial que tenha sido, não esgota o potencial de devir futuro que está contido na obra musical. Por isso, por maior que seja a admiração que eu próprio tenho pela figura de Glenn Gould e pelas gravações de 1980 (ou de 1951) em questão, julgo que se verifica uma total incompreensão do que é o próprio ser no tempo na música.

Quem pode garantir que depois de um determinada gravação, considerada "genial" num certo espaço-tempo, não lhe venha a suceder uma outra nova gravação ou, para colocar uma hipótese mais radical, que um determinado grande artista ainda não nascido, não possa vir a fazer um concerto tão ou mais genial do que aquele que ficou fixo para todo o sempre no objeto CD? Sendo uma captação, uma captura de um momento ou de uma certa conceção de como gravar uma obra, esse facto não altera em nada - nada - o caráter de eterno devir que a música desta tradição possuiu. A partitura é uma condição de possibilidade para que a música possa existir e mantém-se sempre em aberto, para novas interpretações e realizações. Nenhuma gravação pode fechar esse futuro. Um gravação, por melhor que seja, nunca deixará de ser um objeto fixo, imutável, igual a si mesmo, nem quando se trata de uma gravação de um concerto ao vivo. Tornou-se fixo. Confundir uma qualquer gravação com a obra é um erro. É tomar um objeto certamente digno de apreço - a gravação - não apenas como uma realização notável da obra, como o seu próprio ser. Aquilo que o CD de Gould pode ser é apenas ele próprio. É um objeto fixo para todo o sempre. Aquilo que as Variações Goldberg de Bach podem ser continua tão aberto para o devir, para o futuro, para a possibilidade de ser outra vez, com o eram antes de Gould ou Leonardt a terem gravado. Quem não perceber isto, lamento, mas não sabe o que é a música ou passou a tomar o seu mundo privado de colecccionador requintado - tenho igualmente um desses mundos em casa - como sendo "o fim da história" daquela peça. A 9º Sinfonia de Mahler não é a Ilíada de Homero, a minha ópera Outro Fim, não é Os Lusíadas, o Vatek de Luís de Freitas Branco não é Os Maias. Todas estas obras literárias permitem leituras diversas, certamente, mas o seu texto, aberto à exegese, fica no entanto idêntico ao que sempre foi. A diferença maior é que a música só se torna completa enquanto obra de arte na sua realização sonora no tempo através da interpretação de músicos. Deste modo as leituras de obras musicais transformam o seu próprio ser-no-tempo, criam uma realidade nova, um momento único e irrepetível. Argumentar que não se vai ouvir música porque se tem em casa melhor revela a mais crassa incompreensão do que a música é no seu pleno sentido ontológicode sempre em aberto. Nem nunca é o mesmo e melhor será aquilo que logo se verá, se lá se for, ver e ouvir. Acresce essa visão de seres humanos em performance que nenhuma gravação capta, para não falar da enorme diferença entre o som real de um piano ou uma orquestra num disco e o som real de um piano e de uma orquestra numa sala de concertos. Daí que muitas vezes pessoas que admiram A Sagração da Primavera de Stravinsky e a julgam conhecer bem, chegam ao primeiro concerto em que a vão ouvir realmente num concerto e passados alguns minutos poderem dizer: mas isto não dá mais alto? Pois é. É que nas salas de concertos não existe o botão de volume que permite em casa ouvir o Sacre com a potência sonora dos Iron Maiden.

António Pinho Vargas

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