domingo, 21 de dezembro de 2014

Factores de mudança e emergências semi-visíveis no funcionamento do campo musical erudito e na criação musical

"As fases de transição são semi-cegas e semi-invisíveis". Esta frase de um artigo já antigo da RCCS de Boaventura de Sousa Santos, como muitas outras visionárias do autor - tal como "tudo leva a crer que a adesão de Portugal à União Europeia terá consequências dramáticas para a sociedade portuguesa" escrita em 1993, já plenamente confirmada - tem vastos campos de aplicação. Tanto no campo político como económico acumulam-se sinais de mudança - Fukuyama renega os neoconservadores, alguns  antigos neoliberais proclamam de novo a importância dos Estados na regulação da economia, etc., - e estes sinais vão adquirindo maior visibilidade no campo musical. Estes são os momentos em os semicegos se tornam semi-capazes-de-ver e o semi-invisível se torna semi-visível. Continua a ser a turbulência própria das fases de transição aquilo que se mantém e prossegue sem turbulência: a própria turbulência. No campo político, quem poderia prever há poucos anos o aparecimento de novos partidos como o Podemos em Espanha, o Syriza na Grécia, independentemente das consequências que daí poderão advir, ainda da ordem do imprevisível? Mas uma mudança já teve lugar. Portugal, se for fiel às suas tradições histórias, será o último dos países europeus a ter mudanças de semelhante alcance.

No campo musical escrevi no Atual do Expresso, há cerca de um ano, que a vida musical contemporânea estava já marcada pela coexistência em simultaneidade de dois tempos: o tempo da primazia do repertório histórico do campo musical, do cânone clássico-romântico e a sua repetição regular, ao mesmo tempo que a música composta nos últimos anos, com umas poucas excepções, adquiriu progresivamente caracteristicas do período anterior a 1800, ou seja, o carácter de obras destinadas a uma ou duas execuções, tal como se verificava nesse período anterior. Se não é fácil prever o destino da prática da repetição do histórico que tem no "prazer do já ouvido" a sua principal razão de ser, patente nas temporadas e ainda mais nos teatros de ópera - apesar de sinais de inquietação daí provenientes - mais evidência se verifica do outro lado da dicotomia que o século XX criou e aprofundou: a arte feita pelos vivos, amplamente subsidiada por instituições culturais herdeiras longínquas dos príncipes da Renascença, dos reis e bispos do Barroco, dos condados e principados anteriores à Revolução Francesa, historicamente coincidente com o início do conceito de obra e do processo histórico de criação do cânone musical. 

Há outro aspecto que as sucessivas mortes dos vários heróis da segunda vanguarda do pós-1945, naturais face às regras da existência humana, tem trazido à luz do factual: as suas obras, são objecto de "hommages", de "portraits", as consideradas 'melhores' podem são objecto de uma ou outra apresentação nas salas de concertos, mas a emergência que pretendo assinalar, a par com esta rápida mas indiscutível menorização quantitativa e qualitativa da música do passado mais recente por parte das instituições culturais, é a valorização de duas novas categorias: uma, "o compositor ainda vivo", dotado de algum prestígio, a quem se pode propor uma nova obra, uma nova ópera, uma nova residência numa instituição; a segunda categoria é a do jovem compositor - que nos concursos de composição de alguns anos atrás podia ter até 40 anos - sendo agora o conceito central que, a par com o compositor vivo que orienta os seminários, está na base de eventos organizados por novas estruturas transnacionais europeias que finalizam com uma série de estreias de novas obras.

Na verdade qualquer compositor vivo e em plena actividade nas várias vertentes, ultrapassa em muito as reposições do passado recente. Não se aplica afinal a sacralização do "compositor morto" que até há pouco considerei o factor decisivo para o interesse da enorme quantidade de agentes dedicados à catalogação das obras, à publicação de balanços das "obras completas", etc. Este interesse circunscreve-se à academia e nem sempre mantém com a vida musical de concertos uma relação evidente. Na vida das salas de concertos, verifica-se com grande rapidez, na minha percepção, uma enorme diferença entre um relativo, embora de curta duração, entusiasmo face às estreias modernas de obras não tocadas à vários séculos e um pequeno, senão nenhum, entusiasmo face aos compositores recentemente falecidos, passadas as curtas homenagens próprias das circunstâncias, para não referir um número elevado de alguns considerados "mortos em vida" nas escolhas dos programadores de que há alguns exemplos em Portugal mas que é um fenómeno claramente ocidental.
 

A sacralização apenas se verificou historicamente no período da criação do cânone musical - principalmente no século XIX e no seu triunfo alargado no século XX - estanto hoje transmutado numa cerimónia efémera, tão efémera como acabou por ser a vida musical da maior parte deles. Deste ponto de vista teremos de ficar pela hipótese de trabalho, no seu sentido nas ciências sociais: um conjunto de postulados destinados a confirmação ou desmentido posterior por uma investigação mais ampla. 

Verifica-se portanto uma inversão de um novo tipo face à antiga forma de sacralização. Mantendo um prestígio simbólico nas narrativas, grande parte das obras desapareceu com enorme velocidade. Mesmo Ligeti, desaparecido em 2006, com a aura de "talvez o maior compositor da segunda metade do século XX", lugar em outros poderão colocar o ainda vivo Pierre Boulez, sem que essa opção altere substancialmente o lado factual que aqui pretendo analisar, é indesmentível que à antiga sacralização se sucede uma espécie de indiferença. Não há Verdis entre os compositores do século XX com multidões com velas na rua da casa onde iria falecer. Dirão que é um caso particular de popularidade e de interacção entre um compositor e um símbolo político e popular. Sendo isso verdade, este caso extremo mostra que aquilo que se deslocou foi o próprio estatuto geral do compositor, enquanto figura, a sua condição
 
Julgo, para terminar, que já não há heróis, já não há sacralizados, já não há grade presença do repertório do passado recente, excepto nas efemérides: 100 anos do nascimento, 100 anos da morte e esta motivação salienta o carácter de museu imaginário, o termo que Lydia Goehr cunhou.


Para além disso há alguns compositores vivos que circulam nos termos de descrevi antes - com multiplas funções, concertos, seminários, ciclos - e há um grupo necessariamente maior de "jovens compositores" para os quais há um sem número de eventos, dos quais talvez possam evoluir alguns para mais tarde desempenhar um idêntico papel, seguramente na ilusio que motiva os artistas nas fases iniciais, como terá de ser. Completa-se deste modo um funcionamento circular.

Talvez esta realidade esteja na origem da pouca reflexão que se produz sobre esta área e nesta área. A pouca que se produz oscila entre dois exageros manifestos: aquele que diz que não se passa nada que não seja mera repetição do passado" nos exactos mesmos termos que ocorreram e, por isso, não há nenhuma razão para quaquer reflexão, e o segundo exagero, que assinala com preocupação "a morte da música clássica", tendência particularmente visível nos Estados Unidos, enquanto na Europa, é a tendência oposta, já descrita, que tem a primazia: não se passa nada.

Na minha situação particular como autor deste texto, como compositor ainda em plena actividade e por isso, dotado de alguns privilégios locais de acção, mesmo tendo ingerido o maléfico veneno da reflexão compulsiva, direi: sim, vamos trabalhar antes que se faça tarde.

António Pinho Vargas, Dezembro 2014.

3 comentários:

  1. Muito interessante. Os exemplos recentes de Carter e Henze parecem confirmar, dos dois lados do Atlântico, essa "espécie de indiferença" post mortem que refere.

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  2. O número dos exemplos poderia ser multiplicado ad infinitum, sem grande exagero. Para não falar dos declarados mortos-em-vida que são muitos por esse mundo e alguns por este.

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