terça-feira, 14 de abril de 2015

Sobre a forma

"Formas não são estruturas pre-existentes, mas resultados..."
Boleslav Yavorsky. (1877-1942)
"Música é uma sinfonia de correntes energéticas",
Ernst Kurth. (1886-1946).

Estas duas frases de dois musicólogos pouco conhecidos no Ocidente, mesmo no caso do alemão Kurth, gradualmente ofuscado por Schenker, e no caso do russo Yavorsky, radicalmente menos conhecido, mostram que em cada área do conhecimento ou do pensamento, há sempre ainda mais formas de conhecimento, que estão à espera da sua recuperação. Nos dois casos há uma espécie de retorno ao interior da música em relação ao seu exterior, tanto sob a forma de ideias estruturais rígidas, desligadas do seu uso real na música como no caso da consideração daquilo que efectivamente existe em cada momento como "força do discurso" musical. Não é novidade histórica. É sabido que a primeira teoria da forma sonata clássica foi escrita em 1840 por Czerny, já Haydn Mozart e Beethoven tinham morrido há bastante tempo.
Por essa razão, Charles Rosen começa o capitulo Theories of Form, do seu magistral The Classical Style (1971), da seguinte maneira: "A forma Sonata não podia ser definida até estar morta". Nos três casos verifica-se o seguinte paradigma: a prática musical antecede sempre a constituição posterior da sua teoria". Os compositores do período antes e depois de 1800, escreviam sonatas, e formas sonatas nos Allegros das suas Sinfonias, antes de existir qualquer compêndio sobre o que ela era. Era uma prática. A partir do momento em que existiu o compendio, a teoria a forma Sonata já estava em decadência nos termos em que os 3 mestres a tinha usado.
 as formas - cujas definições prévias torturaram muitos compositores do século XX uma vezes com bons resultados outras não - é como diz Yavorsky, o resultado de uma prática de um compositor, da compreensão das forças energéticas que capta e manipula de forma criativa e nunca em obediência a postulados anteriores. E quando é este o caso, há algures uma componente secreta na sua realização. Stockhausen usava a série numérica de Fibonacci. Bartok, mais uma vez descobriu Erno Lendvai muito depois da sua morte, também. Mas entre os dois usos das proporções da série do italiano de 1202, que enormes diferenças existem! A série numérica permanece a mesma desde a antiquíssima data.
É na compreensão das forças, das tensões deste momento, daquela paragem súbita ou mudança temática que os compositores aprendem a sua própria forma de compor. Para além disso, até quando Shostakovich considerou sobre a 10ª sinfonia "vejo que não consegui fazer aquilo que sempre sonhei fazer: escrever um verdadeiro Allegro sinfónica, tal como nunca consegui nas sinfonias anteriores" se pode retirar ensinamentos.
Fossem quais fossem as suas determinações - Estaline já tinha morrido no ano anterior mas nunca se sabia o que esperar - o facto que interessa realçar é que não conseguindo fazer o que sempre sonhara - "um verdadeiro Allegro sinfónico" - e no entanto "ele estar lá", talvez não da forma sonhada mas da forma feita. Perseguir um objectivo como este é necessariamente vago. O que é um verdadeiro Allegro Sinfónico? Estaria a pensar em Beethoven, certamente, em Mahler, que muito admirava, tanto um como outro, mas no seu não conseguir, conseguiu de outro modo "os seus resultados", os resultados que lhe eram próprios, e que o distinguem dos modelos anteriores. No acto de compor há forças, há conteúdos passíveis de várias direcções sempre, especialmente em obras de largas proporções. As relações entre os diversos materiais temáticos da 10º sinfonia, são muito claras tal como a maneira como reaparecem com novas roupagens, instalando a dialética fundamental entre diferença e repetição, um elemento crucial da composição. Mas quando? Quando vou repetir, quando vou interromper e mudar, alterar, transpor, transformar, sobrepor duas entidades temáticas ou rítmicas, ou expressivas? Aqui reside o maravilhoso da composição. Uma ideia vaga - um certo mal estar - como dizia Anna Akhmatova sobre como começar um poema, Primeiro um certo mal estar, e depois um caminho que se abre, um horizonte, um espaço aberto conforme aquilo que se quis ou sonhou à partida fazer. Porque é que o Kyrie do meu Requiem é tão curto? Não sei realmente porquê, mas sei bem que naquele momento - perante o texto que me olhava com as suas três enunciações, senti que tal como a música tinha sido até ali, não podia repetir a terceira vez. Estavam já duas, a segunda com uma nota diferente no acorde de oitava virtual - uma quase oitava com uma nota diferente meio tom abaixo sobreposta à oitava real - e esse facto sonoro, essa completude criada, impedia-me a terceira vez. Compor é assim um estar-no-fazer com toda a atenção ao entretanto criado, interrogando as suas forças, percebendo as suas determinações e aquilo que elas tornam interdito. Ali. Não em livro nenhum. Mas ali.
Nesse sentido aquilo que resultava de uma duração longa da secção anterior e o carácter conclusivo e parcial que o Kyrie consumava, antes de o ser completo mas suas 3 vezes canónicas.
Aqueles dois homens lá em cima não foram compositores, mas sabiam muito bem o que era a música, de uma forma que 100 anos mais tarde se revela mais rica de potencial do que outros nomes. Devo acrescentar que não conhecia nenhuma daquelas frase quando compunha o Requiem, tal como Shostakovich - Deus me perdoe o inaceitável paralelo - não saberia. Tinha ele o seu sonho. Cada um de nós tem de construir as suas metáforas, os seus outros sonhos, um de cada vez, como se fossem todas a primeira. No final de uma obra de meia-hora o número de decisões puramente humanas, desejavelmente livres e no encanto do fazer e ouvir, contam-se por milhares.
APV

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