domingo, 3 de setembro de 2017

Considerações sobre infâmias, resgates e infinitos.

 Considerações sobre infâmias, resgates e infinitos.

1. Na história dos escritos e ditos sobre música durante todo século XX e até hoje há numerosos escritos infames. Adorno vem à cabeça das várias infâmias publicadas. Philippe Lacoue-Labarthe classifica de infames os seus escritos sobre jazz (dos anos 30 e 40) no  livro que reune os seus escritos sobre música. Schoenberg - aquele que era o seu modelo predilecto considerando especialmente a sua fase da atonalidade livre - ele próprio, comentou a forma como Adorno escreveu sobre Stravinsky em termos algo semlhantes: "claro que eu não gosto dele (Stravinsky) mas em todo o caso não se pode escrever daquela maneira [como Adorno o fez]. Na verdade nunca gostei dele". (cit. no livro de Stuckenschmidt, Schoenberg and his Music). 
Apenas sobre compositores alemães Adorno escreve sem o espectro da infâmia por perto. Nos livros tardios sobre Mahler e Berg escreve até de forma produtiva ainda hoje na minha opinião. Melhor dito, seria produtiva se o seu pensamento anterior não se tivesse de certa forma sedimentado no espírito dos artistas - mesmo que nunca o tenham lido - ao contrário do seu destino pouco feliz nas universidades (uma ideia justa de Albrecht Wellmer). Na verdade Adorno, em especial no livro sobre Mahler, coloca em evidencia uma outra perspectiva, diversa da sua anterior fixação no conceito de material (avançado em Schonberg e regressivo em Stravinsky) a favor do que qualifica como dinamismo articulado, fluxos puros e alguns outros conceitos. 

Nesta passagem essa nova posição é clara: "Mahler activa do interior a tonalidade por pura necessidade de expressão, ao ponto que ela [a tonalidade] abraça, fala uma vez mais como se ela fosse imediata […] fazendo-a falar, Mahler provoca na linguagem de segunda natureza uma reversão qualitativa...". Noutro ponto introduz o conceito de carácteres [caractères]: "Mahler enriqueceu a composição com uma dimensão que se viu recalcada como ele próprio o foi, e que aparece hoje cada vez mais como a própria condição [la condition même] da possibilidade de toda a música. É a dimensão dos carácteres, cuja singularidade  desaparece tanto na unidade indiferenciada da linguagem integral actual. […] Esta caracterização drástica [uma transição, um epílogo, um abgesang] graças ao qual cada detalhe, em virtude da função e do sentido que tem no seio do todo, torna-se aquilo que é [devient ce qu'il est], permite-lhe tornar-se mais do que aquilo que é. Abre-se assim a uma totalidade que se cristaliza ela própria a partir de si, e deixa de ser um princípio imposto de fora aos carácteres". 

Claro que Adorno se exprime de forma circular e, muitas vezes, abstrusa, dificil de descortinar (tal como a do seu mestre Hegel). No entanto temos de ler estas passagens  no quadro da sua prosa complexa e no quadro do seu tempo particular. A seguinte resume talvez melhor ainda a sua posição neste livro de 1960: "o movimento do todo, para se impor, deve relativizar o particular; mas não é necessário que os detalhes se dobrem à sua vontade de maneira demasiado conciliante, se eles não querem perder a caracterização que só os qualifica na sua relação com o todo. A façanha [l'exploit] mahleriana é ter sabido dominar [maîtriser] esta aporia".

É uma evidência que Adorno não poderia, julgo, abandonar completamente a sua concepção do material musical, o que explica o uso termo "aporia" aqui empregue. As suas ideias tinham sido expressas, desde sempre, de modo nem sempre claro e muitas vezes contraditório. Mas a música de Mahler obriga-o, nesta fase da sua vida (morreu em 1969), a reinventar os seus conceitos antigos, a acrescentar-lhes novos, de modo a declarar "a façanha de Mahler" juntamente com uma nova interpretação do que antes tinha sido apenas qualificado de regressivo, em suma, a tonalidade. Para Adorno, através dos "carácteres" atrás referidos, Mahler consegue usar a tonalidade de um modo particular que tal lance adorniano expõe: "a estrutura de conjunto permanece sempre aparente, mas em todo o lado [partout] infiltram-se as astúcias, as proporções harmónicas como as das sonoridades maiores e menores, invertem-se em relação à primeira exposição do tema [no lied Der Schildwache Nachtlied] como se este fosse abandonado aos caprichos da improvisação. […] Mas no seio desta identidade ao mesmo tempo vaga e pregnante, o conteúdo musical concreto, a sucessão dos intervalos sobretudo, permanece variável. […] os conjuntos mais vastos encontram-se retomados com esta vaga da qual a memória musical faz, ela própria, muitas vezes a experiência. É isto o que permite dar-lhes uma nova nuance, uma nova luminosidade, um novo carácter enfim. […] Uma tal largueza [largesse] no tratamento do material... legitima tecnicamente a extensão das sinfonias épicas de Mahler". [131, 132]

Deste modo uma matéria sonora oferece "le bonheur de l'art s'irradie dans l'apparition sensible".  [Teoria Estética, 188]. Adorno revela-se nestas passagens um outro pensador, menos conhecido, menos lido e, sobretudo, menos citado.

As vanguardas, tal como os contemporâneos de Mahler, olhavam com desconfiança a sua música, antes da extraordinária Sinfonia de Berio de 1968 a ter, de alguma maneira, legitimado no interior do restrito sub-campo contemporâneo. De certo modo, depois do livro escrito na prosa no fio da navalha característica de Adorno, a Sinfonia de Berio constituiu o segundo capítulo que permitiu um outro olhar.  Um resgate que então foi necessário, de tal modo que, hoje, até nem somos capazes de o imaginar, de tal modo absurda nos parece ter sido essa desconfiança. Creio, no entanto, que o papel maior coube aos maestros como Bruno Walter, Willem Mengelberg, Leonard Bernstein, entre outros, que sempre lhe defenderam a música apresentando-a em concertos: esse é um momento de verdade sem o qual, nenhum livro poderia bastar.




2. Shostakovich foi talvez o compositor vítima dos maiores processos infames de duas ordens diversas. Por um lado, na sua própria vida na União Soviética, com os momentos mais difíceis da infâmia opressiva em 1936 e em 1946-7 e, por outro lado, na sua recepção pelas vanguardas europeias após 1950. Os momentos no interior da União Soviética estão bem documentados e, de certo modo, são divulgados com pouca reflexão associada em torno de alguns aspectos que configuraram uma mitologia discursiva com base naquilo que em francês se diz "anecdotes" - palavra com um sentido muito diferente da sua tradução à letra: um conjunto de histórias exemplares que existem do mesmo modo sobre outros compositores, como é o caso de Beethoven, por exemplo. O outro lado da infâmia  é muito menos considerado e mesmo conhecido. Richard Taruskin no seu artigo "When Serious Music Mattered" publicado no livro "On Russian Music" dá-nos a perspectiva mais profunda que conheço deste segundo aspecto. Na realidade com a excepção de um conjunto de músicos ocidentais, em especial, maestros, que, desde o início tocaram e defenderam a sua música, todo um outro enorme conjunto de compositores e críticos ocidentais se manifestou muitas vezes e de várias formas infames. Uma dessas formas era a pura e simples não-consideração da sua existência. A questão é simples: de acordo com a ideologia das vanguardas musicais, qualquer compositor suspeito de neo-classicismo, era imediatamente relegado para o baú das antiguidades inúteis. A sua música foi objecto de infâmias sucessivas dessa ordem e continua a ser, enquanto, ao mesmo tempo, no cânone do repertório - ou seja, o as obras que mais vezes estão presentes nas salas de concertos do mundo, muito diverso do cânone do ensino da composição ou dos festivais de música contemporânea, amplamente subsidiários da ideologia de Darmstadt pela via da autoridade musical e discursiva de Pierre Boulez, o homem que melhor transportou, defendeu e instituicionalizou aquela ideologia (ver Georgina Born, (1995) Rationalizing culture: IRCAM, Boulez and the institutionalization of the avant-garde, University of California Press).

Distingo a ideologia hegemónica desse grupo de homens, das obras que efectivamente foram compostas sob os seus princípios; caso contrário, estaria a aplicar a mesma redução ao estilo, a mesma redução à ideia de material musical (derivada de Adorno) e à ideia de futuro que esse grupo transportava. Essa redução simplificadora é muito difícil de contrariar dado ter-se tornado uma espécie de segunda natureza na forma de ouvir música (e escrever sobre música). É necessário ultrapassar essa dicotomia criada por eles próprios para poder considerar a sua própria música e resgatar as obras-em-si das formas de poder que se conseguiram expandir historicamente num dado período.

Devo acrescentar que conhecer a música de Shostakovich e saber aquilo que sobre ela era dito e escrito nessas décadas é das coisas que mais me atormentaram nos últimos 20 anos. Tive de reconquistar para mim próprio a música de Shostakovich e, talvez em menor grau, a de Britten - igualmente proscrito nesses meios nos países continentais da Europa - e esse processo não foi sem problemas nem tensões. Tratava-se simplesmente de ouvir as obras condenadas à priori. Um cânone cultural constitui-se por inclusões e exclusões, como é geralmente aceite. Uma vez triunfante, torna-se "uma verdade" até se conseguir desmontar uma série de aspectos: os seus pressupostos de base, a sua filosofia da história inerente e a própria vertente institucional de vários aspectos que se lhe foram associando. Nesse sentido, considerando aquilo que me era dito - julgo ter sido sempre um bom ouvinte e um leitor compulsivo - e, portanto também aquilo que fui lendo sobre os vários assuntos que esta matéria abrange, o facto é que constituir uma dissidência, uma outra visão do que é o mundo musical e do que é a própria composição, se não mesmo a música, foi um longo processo e julgo que será sempre. Uma das suas vertentes está perto da lentidão do processo de individuação de cada um.

Acrescento uma "petite histoire" (para continuar na língua principal desse argumentário). Há cerca de 20 anos comprei os dois livros dos Prelúdios e Fugas de Shostakovich (1951). Ao meu lado estava um antigo professor meu, então já colega (homem que prezo ainda apesar do "vasto mundo" que nos divide; é importante não confundir estes planos). Quando viu o que estava a comprar ergueu-se um pouco mais direito e disse-me, firme: 
"Ó homem, você enlouqueceu?" Respondi-lhe com grande banalidade: "olhe que é uma maravilha..." e coisas desse tipo completamente inútil face à fixidez do preconceito. 
O que está condensado naquele breve momento representa várias coisas, a saber, o antigo cânone daquela área, a sua enorme intolerância face a qualquer diferente - uma "verdade" não admite contradição - e a minha dissidência ainda em processo gradual de afirmação. Nada é fácil na criação artística e nos seus momentos de ruptura.

O resgate da música de Shostakovich, depois de Mahler, talvez o compositor com mais Sinfonias tocadas pelas orquestras do mundo (este é um facto que, por si só, permite avaliar o destino dos vários legados, num dado momento, este em que escrevo; à parte isso não assegura, nem prova mais do que
apenas isso mesmo), o resgate, dizia, teve um agente principal: a sua própria música, a qualidade e a força da própria música. As infâmias, tal como as hegemonias, têm um certo período de validade. Operam no todo social e variam com ele. Passado um prazo, a música expõe-se a si própria com os seus próprios meios e, por vezes, consegue derrubar todas as infâmias anteriores.

3.

Penderecki diz numa entrevista que existe no Youtube, duas coisas com muito interesse. A primeira diz respeito às suas relações com Lutoslawski e Gorecki. Afirma: "eramos amigos claro, mas raramente nos encontrávamos. Na realidade, como muitos disseram antes, ser compositor é fundamentalmente estar só, viver uma solidão". Verdadeiro. Em segundo lugar, a propósito da sua segunda fase como compositor refere a importância que tinha tido para ele o facto de ter assistido  em Berlim a muitos concertos dirigidos por Karajan com música de Bruckner em Berlim numa fase em que lá ensinou. Deste modo podemos inferir que, mesmo sem atingir o grau de crise como foi o caso de Ligeti após Le Grand Macabre - quatro anos sem concluir nenhuma obra - de várias maneiras e com vários compositores se verificou um corte, uma nova atitude neste período histórico. As antigas convicções deram lugar a novas interrogações e a novas formas de conceber a música e o acto de compor. Alguns falaram e escreveram muito sobre isso. Outros nem tanto. 

O essencial reside no tempo. Decretar, seja em que momento for, "um fim da história", um ponto de chegada a partir do qual o processo histórico teria terminado, na política, na economia e nas artes e em tudo o resto, é um erro tremendo e muitas vezes repetido ao longo da histórias das várias artes). Se o tempo não pára e a vida prossegue sob novas determinações, seria muito estranho que uma arte se congelasse por auto-mutilação de futuros possíveis, numa espécie de contradição em relação à própria essência da arte e da vida. Na sua solidão irredutível cada um procura o seu futuro enquanto pode e vive. Traça a sua genealogia, a suas relações de cumplicidade com outros e cria-se a si mesmo quando tem sorte. Fá-lo sempre na dúvida que resulta do facto elementar de o futuro não estar escrito em lado nenhum e ser apenas o tempo e o seu desenrolar, vivido por cada um à sua maneira - a solidão referida - que fornece respostas, mudanças, crises e fases (ou não fornece). Apenas a morte põe um fim efectivo a alguma coisa dos humanos, na sua subjectividade individual irredutível. Mesmo hegemonias provisórias, com a grande força social de estratificação, de imobilismo, de rotina adquirida, têm de ceder ao real, à diferença, mais tarde ou mais cedo. 

4. 

Não digo nem escrevo nada sobre a minha música. Porquê? Porque estou (finalmente!) persuadido que não iria ter nenhuma utilidade. A música é uma coisa, um artefacto humano particular, chamado obra de arte, dotado talvez de infinito intrínseco. Não estou completamente certo disso embora possa parecer evidente, em muitos casos do passado remoto ou menos remoto. 

Uma vez lançada no mundo nada do que (se) possa dizer ou escrever altera seja o que for em relação ao que cada obra é, especialmente se for o próprio a dizê-lo. Afirmada esta diferença irredutível e propriamente ontológica (o ser da coisa) entre a obra e qualquer discurso sobre ela, não julgo necessário
acrescentar nada, depois do momento inicial que muitas vezes é também o momento final, como sabemos. Nenhuma das determinações de carácter sociológico sobre o lugar que ela ocupa no meu país, sobre o lugar que ela ocupa no mundo - em suma idêntico ao dos meus antecessores com pequenas variantes  passíveis de compreensão histórica específica em cada caso - nada de tudo isso se altera se eu - o compositor solitário como foi dito por Penderecki -  disser ou não disser. Aliás já disse e já escrevi.
Dela, dessa música, a que me é mais cara - nem toda me é cara da mesma maneira, como é óbvio - existe em gravações nas plataformas digitais. Feito esse esforço (grande, persistente) tudo o resto me é estranho, alheio, muito para além do meu campo de acção enquanto compositor. Fiz o meu trabalho e pode ser ouvido em grande parte. O que está na música, estará sempre, nem que desapareça totalmente das salas onde momentaneamente aconteceu. Ficará como possibilidade infinita, como acontece com todos os meus ilustres antecessores e sucessores.

(Peço que me entendam: a possibilidade de infinito aplica-se a todas as obras que já foram feitas e às que serão feitas por todos, nos futuros insondáveis, enquanto possibilidade contingente. Se há quem já conheça o futuro não é certamente o meu caso. A isso chama-se contingência, tanto no tempo, como nos vários espaços, os vários lugares das múltiplas culturas. Gostaria de dizer culturas infinitas. Mas infelizmente sei que as culturas podem ter um fim. Muitas já desapareceram nos séculos XX e XXI, juntamente com as línguas em que se exprimiam, como George Steiner nos ensinou.)

Alea jacta est.
  

António Pinho Vargas, Setembro  de 2017






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