Para ir direito ao assunto, no espaço público da música contemporânea, faz-se a crítica da obra, do seu interesse ou desinteresse, da sua invenção ou falta dela, do seu vanguardismo ou conservadorismo e, acima de tudo, do seu estilo. Procura-se identificar um estilo. Julgo que actualmente não se ouve propriamente a música mas se ouve antes as relações que se podem estabelecer com o que já se conhece, as várias identificações de pertença, as possíveis genealogias que existem sempre em qualquer obra de arte. Depois seguem algumas linhas sobre aquilo que, em ultima análise, aconteceu: uma interpretação, eventualmente a da estreia e consequentemente e muitas vezes, a única interpretação. Deste modo cola-se à obra a sua primeira interpretação e não é fácil distinguir as duas dimensões.
De modo completamente diferente, nos múltiplos concertos de música "classica" - a música que ocupa 90% das temporadas em todo o mundo ocidental - pelo contrário só se escreve a crítica da interpretação. Seria inimaginável alguem escrever, por exemplo que tal obra de Beethoven é formalmente desiquilibrada, que aquela Paixão de Bach foi escrita numa linguagem musical conservadora e ultrapassada (e foi); que há laivos de vulgaridade em certa passagem de Mahler, que uma obra de Stravinsky ou Messiaen não possui coerência, ou ainda, sacrilégio supremo, que Wagner é muitas vezes demasiado longo e aborrecido.
Tudo isto - da ordem das evidências - tornou-se impossível ser dito. Não se diz. Não se pode dizer. Não existem fragilidades de nenhuma espécie nestas obras.
São obras sagradas, perfeitas, indiscutíveis. É isto que lhes dá o caracter canónico que têm actualmente e que foi gradualmente constituído ao longo do século XIX. Aquilo que é objecto do escrutínio crítico é sempre e exclusivamente a interpretação, muitas vezes antecipadamente previsível, de acordo com a aura que "os grandes intérpretes" trazem consigo. Quanto maior a aura, maior a previsibilidade. Em todo o caso, mesmo quando um grande artista tem uma noite infeliz - apesar de tudo eles são humanos - assinala-se tal facto com alguma elegância se houver a consciência do carácter sempre contingente da performance musical e um certo respeito pela figura em questão.
Aquilo que não é nunca objecto de qualquer comentário nestes concertos, excepto eventualmente um pequeno enquadramento histórico, é a obra interpretada. Essas obras deslocaram-se, em forte contraste com as novas obras, com as que são estreadas, para uma outra dimensão, a da intocabilidade própria dos deuses. E, no entanto, foram escritas por seres humanos, tão humanos como os humanos que escrevem as obras hoje.
A diferença reside no abismo que separa, no espaço público e no afecto dos melómanos -devidamente instruídos nas obras pelo elevado número de discos de diversas interpretações das mesmas obras que têm em casa (esta é uma nova característica do melómano actual: antes de mais nada é um coleccionador de discos) - o carácter sacralizado da música do passado do carácter humano, demasiado humano, que é próprio das obras de hoje.
Claro que há outro factor: as obras históricas exprimem-se na linguagem musical que constituiu a common practice durante vários séculos, grosso modo, a tonalidade. As novas procuram sempre encontrar uma practice possível de expressão, terminado que está o momento histórico em que o serialismo se viveu como o novo sistema destinado a substituir o antigo.
Este factor, o decisivo, agudiza ainda mais a fragilidade das novas obras.
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