Contado ninguém acredita
(excepto aqueles que passaram por isso): um relato pessoal e uma análise das disfunções da legislação e dos conflitos práticos verificados no ensino da música de 1983 até hoje, de alguns passos dados, mas ainda
de outros necessários para as corrigir.
Há aspectos da vida universitária no sentido lato ou da educação em
geral em Portugal que atingem grande notoriedade pública, que chamam a atenção
das pessoas, dos jornais, e que podem mesmo levar a forte contestação nas ruas
ou a revoltas justas. É compreensível que assim seja dada a enorme importância da
educação na qualificação e requalificação das sociedades. Mas há outras áreas
que, inseridas nos seus pequenos nichos de existência, passam sempre
despercebidas no espaço público ou estão mesmo ausentes e, como tal, nunca “existiram”,
na verdade, excepto nos momentos de uma eventual greve iminente. Por isso é
necessário contá-los, descrever casos concretos e analisá-los: o caso do ensino
da música do nível superior é uma dessas áreas.
O ensino da música sofreu uma transformação a partir de 1983-4, com a
criação das Escolas Superiores de Música em Lisboa e Porto e a sua integração
nas Institutos Politécnicos. Esta reforma foi criada durante a tutela do Ministro
da Educação Roberto Carneiro, durante um dos governos de Cavaco Silva.
O primeiro erro foi integrar as Escolas recém-criadas nos Institutos Politécnicos o que não deixa, por
si só, de ter representado uma determinada visão da música e das artes. Daí
derivaram uma série de problemas relativos às habilitações dos recém-formados e
a uma sucessão de nova legislação, novos despachos, novas correções das
legislações e das disfunções anteriores, durante mais de duas décadas. Não é
aqui que poderei abordar toda esta problemática em questão. Quero apenas
referir que a transição se deu entre dois modelos históricos: o ensino da
música do modelo conservatorial – de origem francesa, pouco depois da Revolução
Francesa e que durou quase dois séculos – e a adopção do modelo anglo-saxónico
integrado nas Universidades que, a partir sobretudo dos anos 1980, adquiriu
gradual primazia no continente europeu.
Esta transição não foi fácil uma vez que os velhos Conservatórios
existentes estiveram sempre, em todos os países, separados do sistema
universitário e, como tal, seria necessário, considerar sobretudo dois
problemas: primeiro, o novo estatuto secundário que passaram a ter e segundo, a
forma como o estatuto dos professores com muitos anos de serviço, seria
considerado face ao novo sistema. A solução foi risível: o problema não foi
sequer considerado. O segundo aspecto prendia-se com a necessária contratação
dos professores para as novas escolas. Tendo sido escolhidas para as Comissões
Instaladoras das Escolas Superiores de Música (ESM) pessoas de reconhecido
mérito no campo musical ou do ensino musical, mas cautelosamente escolhidas
dentre os que tinham feito cursos universitários, fosse de que tipo fosse, gradualmente – num processo longo - foi-se
reclamando a sua progressiva integração no sistema universitário, com os seus
graus, licenciatura, mestrado e doutoramento – que foram sendo incentivados ao
longo dos anos, sem que tivesse sido encarado atempadamente o estatuto dos
antigos professores ou alunos formados pelos Conservatórios, sem qualquer
estatuto aplicável similar aos do sistema universitário, como aliás em todos os
países do mundo, com exceção dos anglo-saxónicos, como já referido.
Dos erros cometidos nesta transição resultaram muitos erros, muitas injustiças, muitos oportunismos e
mostrou-se muita falta de competência por parte de quem detinha a possibilidade
de legislar ou decidir sobre a matéria. Os antigos conservatórios passaram a
destinar-se ao ensino secundário, mas mais do que isso, de repente, começaram a
ser pedidos aos antigos alunos formados nos Conservatórios, com provas dadas, alguns
já em pleno trabalho profissional de qualidade em orquestras, em escolas e em
carreiras mesmo solísticas, aquilo que eles não podiam dar: os seus
certificados de habilitações universitárias. Esta questão, que afectou muitas
pessoas, não me afectou pessoalmente uma vez que tinha completado o curso de
História na Faculdade de Letras da U. Do Porto e um membro da C.I. da ESML
confessou-me, com perplexidade, que devia ter sido escolhido, não por ser o músico que, era mas por ter também o curso de Engenharia. Este aspecto mostra que a desconfiança estava
presente desde início em relação à atividade artística como sendo uma atividade
“menor” face aos altos cursos universitários tradicionais.
Como referi atrás, para tratar de uma vez a questão dos dois mundos do
ensino, até então separados durante quase 200 anos, teria sido muito mais fácil,
desde logo, com pragamatismo, atribuir uma determinada equivalência aos
professores formados nos Conservatórios, a exemplo do que sucedeu noutros
países europeus que passaram pelo mesmo processo. Mas, em Portugal, as ESM
começaram a funcionar com poucos professores e as suas comissões instaladoras
nomeadas pelo governo, ou pelos Institutos, optaram por recrutar novos
professores dentre os antigos e alguns novos, mas sempre caso a caso. De todos os
erros de base deste mau começo, decorreram as múltiplas disfunções que demoraram
mais 20 anos a começarem a corrigir-se.
Darei alguns exemplos concretos de alguns casos absurdos, todos do meu conhecimento pessoal, sem mais interpretações ou análise. Por vezes, os factos são mais eloquentes do que quaisquer análises. No incício deste processo
Darei alguns exemplos concretos de alguns casos absurdos, todos do meu conhecimento pessoal, sem mais interpretações ou análise. Por vezes, os factos são mais eloquentes do que quaisquer análises. No incício deste processo
1. No incício deste processo, alguns músicos já em plena
atividade profissional nas orquestras, Gulbenkian, Sinfónica Portuguesa e
Orquestra do Porto, foram obrigados a inscreverem-se nas ESM para poderem ter
habilitação adequada. A maior parte deles depois integrou e muitos integram
ainda o corpo docente.
2.
Em certos casos, mais difíceis de
tratar deste ponto de vista, cego e burocrático no qual a própria prática
profissional era totalmente descartada e apenas o diploma em questão ou era
considerado, verificou-se que em numerosos casos e durante mais de uma década muitos
professores se depararam com a seguinte realidade: no momento do exame final,
os alunos que tinham tido, passavam imediatamente a ter uma habilitação
superior à do professor que tinham acabado de ter!
3. Noutros casos professores
considerados aptos para ensinar na escolas, foram considerados inaptos para
prosseguirem os seus estudos no patamar seguinte, entretanto criado na própria
escola, coisa que não se verificava com os seus próprios alunos. A mesma escola
que considerava um professor competente para lecionar, não o considerava habilitado
ou competente para se inscrever a par com os alunos que ele próprio tinha tido.
Não conheço maior absurdo. Mas aconteceu com vários.
4. Face a estas disfunções e à
rigidez que se instalou face a estas questões alguns professores inscreveram-se
nos Cursos da Universidade Nova – destinado à musicologia história – e assim
poderem apresentar o diploma de licenciatura. O facto de o âmbito de estudos
não ser equivalente de modo nenhum não reduziu a absurda prática que teimou em
nunca considerar a habilitação artística propriamente dita como relevante.
Apenas há poucos anos se instituiu “o estatuto de especialista” para obviar aos
casos mais flagrantes.
5. Nesta situação, muitos professores
optaram por se inscrever na própria escola onde eram professores, noutros
cursos paralelos, de modo a evitar possíveis consequências negativas para a sua
carreira docente, muitas vezes ao fim de dez ou quinze anos de serviço.
6. Verificaram-se alguns casos em que
movidos pelas mesmas motivações e empurrados pela hipocrisia legalista de tipo
novo-riquismo universitário, alguns professores se inscreveram com alunos de si
próprios e assim obtiveram os diplomas que a burocracia lhes recusava de outro
modo. Não foram poucos estes casos. Kafka não seria capaz de imaginar melhor. E no entanto...
7. Ao contrário do que possa parecer,
não me parece que esta prática tenha sido censurável do ponto de vista
individual. Face à rigidez referida, à atitude temerosa das instituições
vítimas do complexo neo-universitário, que,
aliás, atinge em geral os próprios politécnicos e das disfunções na articulação mal
pensada e pior implementada entre as diversas instituições do ensino superior
musical, que levava muitos formados nas novas universidades, com valências
determinadas mas seguramente não comparáveis em termos de formação com as dos alunos das ESM, mas,
pelo contrário e inversamente, possuiam habilitação académica superior face à diferença de base então
em vigor entre o ensino Universitário e o Ensino Politécnico. É necessário
afirmar que as principais vítimas destes erros foram numerosos músicos e
professores que, durante décadas, se viram na necessidade de interromper as
suas carreiras profissionais ou de lidar
com a rigidez burocrática e os critérios de dois pesos e duas medidas já
exemplificados, que imperava ou ainda impera como lei.
8.
Por isso, compreende-se que,
perante uma tal quadro, até a situação aparentemente mais absurda – "ser aluno
de si próprio" – que, à partida parece moral e eticamente insustentável, foi no
entanto admissível, quando, do outro lado, do lado das direções, das tutelas e
dos sucessivos ministérios não houve nunca uma ação decidida nestas disfunções.
Tudo aparentemente para evitar aquilo que parecia o mais assustador ou ameaçador aos olhos
dos decisores: considerar que ser competente como músico e professor de música
– de facto, essa competência sendo reconhecida pela instituição uma vez que se
tratavam de professores ao serviço das escolas, nalguns casos há mais de uma
década – deveria naturalmente poder confirmar-se através de uma equivalência determinada no momento
adequado para atribuir uma habilitação académica, o que nunca se verificou nas leis, senão após vários anos de instabilidade. Verificou-se que um combate
surdo pela superior legitimidade dos diferentes saberes – em suma, teóricos ou
práticos – se manifestava com persistência, ao ponto de os únicos detentores da possibilidade de
atribuir equivalências – longos anos apenas o Curso de Ciências Musicais da
Universidade Nova - nunca conseguiu vencer os seus aparentes e reais "complexos
de superioridade" académica face àquilo que designavam pejorativamente, nos piores mas significativos casos, como músicos “práticos”. Um doutor era sempre um
“doutor”. Este aspecto de “distinção”, certamente próprio da sociedade
portuguesa a começar pelo tratamento das pessoas licenciadas no quotidiano, se comparado
com outros países, nos quais doutores são apenas os médicos, como a Alemanha, a
Holanda ou a Inglaterra e outros, teve aqui uma manifestação esplendorosa desta caracteristica atávica e medíocre e de uma falta de visão de futuro que nos marca o ser
colectivo.
9. Ao longo destas duas décadas verificou-se uma permamente turbulência na legislação relativa às bolsas de doutoramento por parte do Ministério da Ciência e Tecnologia. Tendo regras diferentes das universidades, impedidos de aplicar a regra da "licença sem vencimento", nem "o ano sabático", os Politécnicos foram alternando, de acordo com as mudanças da legislação da FCT, entre a impossibilidade e a possibilidade face a esta questão. Aqueles a quem aconselhava fortemente a fazerem os seus doutoramentos, em certos anos, puderam manter o seu vínculo, mas noutros anos, pura e simplesmente, foram obrigados a abandonar as escolas. Neste casos funcionou internamente o "acordo de cavalheiros" informal, geralmente cumprido inter pares, mas alguns dos novos doutorados, uma vez reintegrados, viram, nalguns casos, o seu vencimento diminuído por erros burocráticos de processamento, a sua situação nas escolas oscilante, e ainda o seu novo estatuto tardiamente reconhecido, de acordo com as crises financeiras dos Institutos. As recentes reclamações em curso dos bolseiros da FCT traduzem a continuação da cegueira legislativa e, sem dúvida, uma desconsideração da actividade científica .
9. Ao longo destas duas décadas verificou-se uma permamente turbulência na legislação relativa às bolsas de doutoramento por parte do Ministério da Ciência e Tecnologia. Tendo regras diferentes das universidades, impedidos de aplicar a regra da "licença sem vencimento", nem "o ano sabático", os Politécnicos foram alternando, de acordo com as mudanças da legislação da FCT, entre a impossibilidade e a possibilidade face a esta questão. Aqueles a quem aconselhava fortemente a fazerem os seus doutoramentos, em certos anos, puderam manter o seu vínculo, mas noutros anos, pura e simplesmente, foram obrigados a abandonar as escolas. Neste casos funcionou internamente o "acordo de cavalheiros" informal, geralmente cumprido inter pares, mas alguns dos novos doutorados, uma vez reintegrados, viram, nalguns casos, o seu vencimento diminuído por erros burocráticos de processamento, a sua situação nas escolas oscilante, e ainda o seu novo estatuto tardiamente reconhecido, de acordo com as crises financeiras dos Institutos. As recentes reclamações em curso dos bolseiros da FCT traduzem a continuação da cegueira legislativa e, sem dúvida, uma desconsideração da actividade científica .
10. Alguns deste agentes dos cursos universitários
que se apressam agora a tentar estabelecer protocolos com as ESM, quer do Porto
quer de Lisboa, perante o inegável sucesso de que estas escolas sempre deram
mostras durante anos, ficaram, nessa fase de transição, como que paralisados e num
estado de auto-encantamento face ao seu próprio estatuto académico universitário e sempre resistiram a considerar os músicos formados nos politécnicos no mesmo patamar sequer. Esse
estatuto académico é, em si mesmo, totalmente legítimo, como é evidente, mas, ao mesmo
tempo, é específico e não contém nenhuma superioridade face a outras valências e competências.
Esta pequena guerra entre instituições, entre ideias feitas sobre saber teórico e saber prático - uma querela epistemológica - provocou danos concretos em muitas pessoas. Mas, por exemplo, no momento da “verdade”, de uma verdade particular, neste caso, um
concerto, o momento em que era necessário contratar um músico ou um cantor
para fazer um concerto, certamente que os critérios que prevaleceram sempre
foram os da competência especificamente musical, as suas qualidades reais enquanto
músicos e não ocorreria a ninguém, responsável cultural ou agente da vida musical
nestas circunstâncias, perguntar a determinado pianista considerado, cantor com
carreira sólida, compositor de créditos firmados, etc., qual seria o seu
estatuto académico. O lugar da
importância desse título é outro e, nesses momentos, a querela epistemológica era suspendida pela força do real.
Conclusão
Esta não consideração das diferenças entre os
saberes, esta vassalagem ao saber universitário, visto como superior e interpretado no seu sentido
mais restrito, “o diploma académico”, esta resistência à consideração da interpretação ou da criação, como factor de apresentar,
uma outra forma de saber, na próprio acto da performance outra forma de conhecimento, eventualmente
mais rico, foram factores manifestos de tribalização autista inter-instituições e de
novo-riquismo universitário que afectou um número considerável de pessoas,
durante largos anos. Neste momento, em que proliferam cursos de Estudos Artísticos
nas Faculdades, Cursos de instrumentos, composição e jazz nas Universidades,
esta questão está, finalmente, a começar a ser esbatida. É de lamentar que tenha
demorado tanto tempo um acerto, uma aceitação da especificidade e da
complementaridade dos vários saberes não só possíveis, como realmente existentes,
na diversidade de mundos da vida que é própria do diversidade do real. É nos
pequenos mundos fechados que se verifica a construção de castelos e de feudos de
duração curta e também aqui se manifesta uma característica geral da sociedade portuguesa. Além disso, a troca entre os diversos saberes só pode ser
enriquecedora, ao contrário do pareceram pensar em tempos aqueles que colocaram
o saber teórico em concorrência com o saber prático. Estes saberes, se considerados
corretamente no seu lugar e na sua função, podem e devem interagir. Se forem vistos
como concorrenciais tornam-se lugares de lutas e combates por uma primazia sem
sentido.
António Pinho Vargas
Postscriptum:
1. Os antigos Conservatórios de Música que, como referi foram criados pelo Directório da Revolução Francesa, foram durante os dois séculos seguintes as instituições onde estudava e se formava quem queria estudar música. Não havia outras. Não ter tido este aspecto em conta no momento inicial da reforma foi um erro tremendo. Se não havia outras onde poderiam os músicos estudar? Deviam ter todos emigrado para os EUA ou a Inglaterra onde já existia ensino integrado nas Universidades há mais tempo? Não se tratava por isso de não fazer nenhuma reforma do ensino da música. Ela era necessária. Tratava-se de a fazer tendo em conta aquilo que existia anteriormente na maior parte dos outros países do mundo.
2. Suspeito que alguns passos dados mais recentemente na legislação em Portugal poderão ter derivado, directa ou indirectmanete, da emergência, sobretudo no Reino Unido, por volta de meados dos anos 1990, de uma área de estudos musicais chamada Performace Studies. Como o nome indica, esta área dirigiu-se justamente para o núcleo daquilo que foi fundamental nas disfunções teoria-prática que ocorreram em Portugal desde o aparecimento das escolas superiores. Esta disciplina tem no seu cerne a ideia que a "performance" musical representa em si mesmo, uma forma importante de saber, concomitante com e complementar da a teoria, da análise musical, da composição, e nesse sentido, acabou por trazer de volta para a academia justamente aqueles contra os quais era dirigida a desconfiança dos "universitários": os músicos. Dada a tendência que preside a todo o tipo de reformas em Portugal - repetir ou adaptar reformas provenientes dos países centrais do sistema-mundo - não se pode deixar de considerar que este terá sido um factor que desestabilizou as convições arreigadas do inútil confronto entre a teoria e a prática, que até então constituiam a base da maior parte das disfunções referidas.
3.
-->O secretismo em que se trabalha e administra nestas instituições – e que
permitiu muitas das disfunções relatadas – é uma espécie de “adquirido” que
deve ser contestado. Atualmente reclama-se “transparência” em todas as esferas
do espaço público e na atividade governativa do país. Não há nenhuma razão para
que, nestas pequenas instituições, prevaleça aquilo que mais parece um resquício
dos antigos hábitos salazarentos das decisões autocráticas e antidemocráticas,
tomadas no segredo dos gabinetes, do que o simples e debate de posições diversas
no interior dos órgãos próprios das escolas, que, esse sim, deve ser aberto,
não ter tabus, nem confundido com uma mera conflitualidade entre indivíduos. É
nesses órgãos o lugar para reclamar uma nova atitude, mais consentânea com o carácter
institucional que é o seu, e não com uma espécie de concepção – igualmente muito
espalhada na sociedade portuguesa – de exercício da função pública como se
fosse uma conquista pessoal de estatuto e de poder. Certamente que há “estatutos”
diversos nestas instituições e o poder executivo e decisório deve ser exercido
nesses órgãos, sem dúvida, e não nos corredores das escolas e das
universidades. Mas “o medo do debate”, o “medo do confronto entre ideias
diferentes”, “o medo da divergência”, seja qual for o assunto, remete para
hábitos autoritários enraizados há longo tempo que urge alterar, modificar,
melhorar.
Postscriptum:
1. Os antigos Conservatórios de Música que, como referi foram criados pelo Directório da Revolução Francesa, foram durante os dois séculos seguintes as instituições onde estudava e se formava quem queria estudar música. Não havia outras. Não ter tido este aspecto em conta no momento inicial da reforma foi um erro tremendo. Se não havia outras onde poderiam os músicos estudar? Deviam ter todos emigrado para os EUA ou a Inglaterra onde já existia ensino integrado nas Universidades há mais tempo? Não se tratava por isso de não fazer nenhuma reforma do ensino da música. Ela era necessária. Tratava-se de a fazer tendo em conta aquilo que existia anteriormente na maior parte dos outros países do mundo.
2. Suspeito que alguns passos dados mais recentemente na legislação em Portugal poderão ter derivado, directa ou indirectmanete, da emergência, sobretudo no Reino Unido, por volta de meados dos anos 1990, de uma área de estudos musicais chamada Performace Studies. Como o nome indica, esta área dirigiu-se justamente para o núcleo daquilo que foi fundamental nas disfunções teoria-prática que ocorreram em Portugal desde o aparecimento das escolas superiores. Esta disciplina tem no seu cerne a ideia que a "performance" musical representa em si mesmo, uma forma importante de saber, concomitante com e complementar da a teoria, da análise musical, da composição, e nesse sentido, acabou por trazer de volta para a academia justamente aqueles contra os quais era dirigida a desconfiança dos "universitários": os músicos. Dada a tendência que preside a todo o tipo de reformas em Portugal - repetir ou adaptar reformas provenientes dos países centrais do sistema-mundo - não se pode deixar de considerar que este terá sido um factor que desestabilizou as convições arreigadas do inútil confronto entre a teoria e a prática, que até então constituiam a base da maior parte das disfunções referidas.
3.
Não tenho conhecimento nem competências para compartilhar da sua visão sobre a especificidade do assunto. Mas partilho daquilo que me parece ser uma inquietude (justificadissima) sobre o sistema educativo na sua generalidade. Uma das coisas que não consigo entender é esta visão segmentada e hierarquizada do ensino, de um lado as Universidades, do outro os Politécnicos e, agora com pompa e circunstância, as vias profissionalizantes. Não está em causa os processos mas sim da valoração que se instalou na consciência colectiva de que todos temos de ser doutores. E, embora compreenda que alguma coisa tinha de ser feita em matéria do acesso e conclusão de cursos superiores, isto em comparação com os nossos parceiros (?) europeus, o privilégio da forma em relação ao conteúdo tem sido devastador. Por experiência própria, confesso que senti muita desilusão ao longo de meu percurso universitário.
ResponderEliminarPartilho o seu desapontamento, caro Carlos Gomes e sei que não somos só nós a tê-lo, infelizmente.
ResponderEliminarAntónio, cheguei aqui pelo texto/resposta que o Ticha escreveu no Ideia Soltas. Como sabes estou bem dentro do assunto, tendo inclusivamente, feito parte há uns anos atrás, de uma associação APEMÚSICA, que tentou fazer lobi para resolver alguns problemas decorrentes da situação descrita por ti e pelo Ticha.
ResponderEliminarContinuo a ser professora de Educação Musical e caso não te tenhas ainda apercebido, houve este ano mais uma redução, no currículo nacional do 2º e 3º ciclos, da carga horária da Música. Sendo assim não sei mesmo para onde nos querem levar os políticos da nossa praça!
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderEliminarAcabei de ler este texto e senti uma nostalgina profunda ao ver descrita, de uma forma tão realista, a destruição constante dos esforços e valores de muitos daqueles que há imensos anos lutam pela educação artística na área da música, de uma forma clara e plenamente integrada no sistema de ensino.Vivo esta realidade, sendo eu filho do modelo conservatorial, e revejo o meu percurso em alguns pontos abordados nesta problemática. Lamento profundamente mais esta machadada no ensino, que este ano foi dada sem dó nem piedade, e pergunto-me quando é que o ensino artístico em portugal poderá ser encarado de forma séria, sem vivenciarmos a questão levantada da conflitualidade entre indivíduos.
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