quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

Compor o compositor: as condições de possibilidade para "ser livre".



Porque é que terei as condições de possibilidade para "ser livre" enquanto compositor? Em boa parte porque sou periférico.

[Ponto prévio: devo tentar explicar a minha perspectiva sobre os diferentes olhares. O que é que vê um periférico? Vê o que se passa no seu país e aquilo que lhe é dado conhecer pelos dispositivos de divulgação dos países centrais; desse modo conhece relativamente bem a música de hoje feita em França, na Alemanha, na Inglaterra e, em menor grau, na Itália e nos Estados Unidos. Mas não conhece a música feita nas outras periferias, em Espanha, na Grécia, na Irlanda, na Bélgica, na Dinamarca, na Suiça, na Bulgária, na Roménia, na Rússia, etc., a não ser a dos compositores destas periferias que emigraram para o centro. O que é que vê e conhece um compositor dos países centrais?  Vê acima de tudo o se passa no seu país, ignorando não apenas a música de todos os periféricos como igualmente a música dos outros países centrais, excepto a daqueles que fazem parte do 'subcampo contemporâneo', a parte da produção musical que tem o aval de instituições europeias como o Réseau Varèse e outras similares de menor peso. Nesse sentido cada compositor de um país periférico conhecerá mais mundo do que os dos países centrais, ofuscados que estão, como afirma Kundera, pelo brilho da sua própria cultura]

A resposta, aparentemente paradoxal, que reclamo para a minha pergunta, passa por uma análise das formas como é vista a figura do compositor nos países centrais. Estes países dotados de dispositivos de poder, tanto de condicionamento como de distribuição ou irradiação - cada vez mais reduzida, em verdade - que são apenas operativos se associados a uma determinada ideologia que define o compositor como "autónomo" e "heróico". Esta ideologia tem uma história, espaços de enunciação originários, instituições que simultaneamente a regulam e são reguladas por ela, em intrínseca interligação.
Trata-se de um imaginário sem o qual todo o edifício institucional associado ao "mundo da arte" musical colocaria em questão a sua própria razão de ser.  Nesse sentido é indispensável para a manutenção do actual estado de coisas.
Estes conceitos reguladores, estes imaginários partilhados não se circunscrevem aos países centrais da Europa, ou de forma mais lata, ao Ocidente. O seu alcance é mais vasto e abrange as diversas tribos locais locais, periféricas e semi periféricas, sem as quais não haveria mercados importadores para os produtos culturais provenientes dos países dominantes. É por isso crucial para as ideias reguladores do campo musical e do subcampo contemporâneo sejam capazes de ser aceites como verdadeiras para além dos países centrais.
Esta tripla associação entre conceitos reguladores, imaginários partilhados e dispositivos de poder económico-culturais que gerem a dominação geocultural no campo musical é crucial para qualquer das três componentes principais do complexo edifício ideológico que lhes serve de base de sustentação e de sobrevivência. Como condição fundamental desta crença está a ideia universalista: uma ideia que toma imediatamente como válido em qualquer lugar do mundo aquilo que origináriamente é apenas local.

Neste quadro o compositor local, periférico, inexistente face às estruturas de selecção e exclusão do subcampo central e transnacional, ignorado ou marginalizado nos seus próprios países, encontra aí, ao mesmo tempo, o seu limite e a sua possibilidade de libertação criativa. Como se processa este fenómeno, aparentemente contraditório?
A sua possibilidade de autonomia criativa face às correntes dominantes é-lhe dada, de forma paradoxal, pelos limites impostos pela inexistencia global mas reclama uma segunda condição.
Essa segunda condição - a libertação possível mas não garantida à partida das estéticas dominantes - só se pode realizar através da autoconsciência face ao funcionamento complexo das componentes ideológicas, das ideias aceites e correntes em geral, do seu imaginário difundido como verdadeiro. Sem essa assunção consciente de não-pertença, nem do ponto de vista da realidade, nem do ponto de vista do horizonte de expectativas, verifica-se um fenómeno particular de falsa-consciência. Neste caso o compositor periférico trabalha e produz comandado pelos valores e crenças que recebe e assume como seus, sem com isso alterar substancialmente a sua condição de periférico. É a imaginação-do-centro que alimenta o equívoco de pertença a um mundo do qual só existe a imaginação dele.
Mas, se existir essa consciência de pertença a um lugar de enunciação especifico - exterior aos valores dominantes nos centros - o compositor periférico liberta-se das várias formas de pressão ou dominação semi-invisíveis. Primeiro, liberta-se da ideologia dos "mais avançados", da pressão das ideias do "estado da linguagem musical"; segundo, da primazia das correntes aí dominantes, em cada momento histórico - que, aliás, neste momento particular são diversas mesmo nos diferentes países centrais - e terceiro, pode estabelecer para si próprio um outro conjunto de valores em que acredita, criar laços de afecto com o público do seu país com o qual interage - dando e recebendo - e com o qual partilha a condição da periferia, e desse modo, criar uma individualidade distintiva, que não poderia alcançar fora desse lugar de enunciação.

Não é por acaso que a grande parte dos compositores emigrantes, depois de 1950 até hoe, assumiram como seus os valores dominantes dos países onde foram acolhidos; de outro modo o conflito estético resultante teria provocado a dificuldade de, simplesmente, trabalhar. Face às actuais diferenças entre os países centrais, que só a ideologia universalista torna invisíveis - uma vantagem do periférico: ver o que os outros não conseguem ver - não é indiferente emigrar para a França, ou a Alemanha, ou a Inglaterra, embora este aspecto não tenha sido até hoje objecto de grande reflexão publicada. De certo modo ouve-se nas obras dos compositores emigrantes (da segunda metade do século XX até hoje) a marca indelével do contexto cultural escolhido, da narrativa aí predominante, a par com aquilo que sobra para constituir uma assinatura de autor. Muitas obras foram compostas nas quais é possivel à simpels audição detectar essas marcas. Algumas dessas obras são boas composições. O que está em jogo não é da ordem do julgamento de valor mas sim da marca geocultural. Na verdade cada lugar, cada contexto, cada sistema de ensino, cada estrutura institucional, contribui fortemente para "compor o compositor".
Considerando as principais correntes que existem neste momento na vida musical do subcampo contemporâneo  e também alguns compositores (por exemplo, entre muitos outros, como Sofia Gubaidulina, mas que, de outro modo, tem muito trabalho e é bastante tocada em instituições mais tradicionais e menos contralizadas) que, de algum modo, não marcam presença regular nele, especialmente na sua estrutura institucionalizada que é o Réseau Varèse, rede que dispõe de apoios de fundos da UE e que corporiza a continuidade da dominação longínqua, herdeira do eixo Darmstadt - IRCAM, irei procurar descrever aquilo que, a meu ver, marca a minha diferença enquanto periférico e enquanto não alinhado pelos valores centrais dominantes.
Em primeiro lugar não partilho a ideia de unidade, coerência, lógica, construção, conjunto de conceitos base das tendências pós-seriais dos vários matizes. Esta corrente caracteriza-se igualmente por manter fidelidade ao conjunto de interditos cuja origem remonta a Schoenberg. Os interditos são em particular acordes perfeitos, oitavas e ritmo regular ou pulsado, todos vistos como sobrevivências anacrónicas e reaccionárias do sistema tonal, declarado extinto pela visão linear da evolução da linguagem musical de raiz hegeliana. Este conjunto complexo de princípios base e interditos práticos  (mais ligados a uma filosofia da hstória da música do que aos procedimentos eles-próprios, (cf. o artigo Racionalidade(s) e Composição, 1999) é seguido pelos favoritos do Réseau Varèse que prolongam e prosseguem esta orientação. Há certamente algumas peças compostas por este grupo compositores que considero boas peças, apesar de não partilhar os seus princípios, nem os seus pressupostos.
O facto de não tomar essas ideias como válidas hoje, permite-me não apenas não considerar nenhum dos seus interditos, como não partilhar os conceitos organicistas derivados de Goethe - unidade, coerência, lógica - e, em consequência, abrir como zona de livre invenção e de imaginação criativa a construção de "regras" para cada obra, sem por isso sentir como necessário o estabelecimento de qualquer conjunto de principios teóricos base. Nesse sentido vejo o acto de compor da forma que Stanley Cavell descreveu como característica da arte moderna: "O artista deve criar a sua obra num modo de radical auto-reflexão". (Hammer: 2002: 98)
Conheço aqueles princípios nas suas várias encarnações históricas e realizações artísticas e estou longe de demonizar essa corrente como um todo. Sou, no entanto, crítico feroz da primazia que algumas instituições e dispositivos culturais atribuem (ou atribuíram) a essa corrente, mesmo antes de ouvirem as obras, quaisquer que sejam. Trata-se de incluir à priori com base em preconceitos estabelecidos e na hegemonia.

A recusa dos princípios base assenta na rejeição de uma possível enunciação sua, apriorística. Isto não significa que eles não regressem, eventualmente, noutra fase posterior. É durante a própria composição das peças que se estabelecem as "regras" que lhes são próprias, que se desvendam gradualmente como necessidade - de acordo com os meus critérios específicos de coerência e lógica discursiva que me parece que aquela obra, em particular, reclama - e não por serem entidades prévias, absolutas, universais e indiscutíveis. Cada momento histórico, cada corporização de um estilo de uma época ou de um compositor - normalmente estabelecida posteriormente, a partir da visão de um conjunto de obras do passado - mostra-nos que, mesmo no caso da longue durée que a tonalidade constitui, os critérios de avaliação daqueles valores foram, eles próprios, mudando ao longo do tempo. Assim sendo - o que me parece consensual - seria muito estranho que o nosso tempo tivesse levado a cabo uma inversão dessa ordem das coisas, criando formas indisputáveis daqueles conceitos reguladores.
Aqui reside a contingência essencial da arte: cada obra explica o seu próprio ser ou não explica.

Por outro lado, na sequência do trabalho dos minimalistas americanos, um vasto número de compositores, com destaque para os de língua anglo-americana, passaram a utilizar sobretudo a partir de 1980, não apenas ritmos pulsados regulares, mas gradualmente um conjunto de princípios harmónicos próximos da tonalidade, muitas vezes associados ao uso da orquestração e da instrumentação totalmente de acordo com o que define academicamente "uma boa orquestração" à maneira do final do século XIX ou da primeira metade do século XX, em certos caso expandidos com harmónicos superiores em maior ou menor grau derivados de análises e dos procedimentos espectrais, característicos da corrente francesa do mesmo nome, para eventualmente enriquecer a harmonia, no fundo de base tonal e tornar a sonoridade mais "moderna". Também neste caso se verifica existirem uma série de ideias herdadas, de lugares-comuns aceites mas muito aquém de poderem ser indiscutíveis. São formulações provisórias de que cada um possui uma visão particular ou individual. Não é certamente o maior ou menor número de aderentes que dá a uma corrente a menor possibilidade de reclamar o estatuto de "verdade". Trata-se apenas de substituir uma série de convicções por outra série de convicções e traduz-se numa determinada prática ou num conjunto de práticas.     
De uma forma geral não sigo igualmente estes procedimentos. Não pretendo, à partida, que as minhas peças tenham uma sonoridade tradicional, um discurso leve, nem as formas harmónicas que Richard Taruskin designa por New Age. Mas, do mesmo modo, nada me garante que, do ponto de vista da recepção, elas possam eventualmente recebidas como tal. Entre as intenções do compositor e a forma como o seu trabalho é recebido, há a barreira que sempre existe entre o fazer e o percepcionar - entre a poiesis e a esthesis - que está para além daquilo que um compositor pode controlar. Faz o seu trabalho, lança-o no mundo, mas depois as possibilidades de recepção e de interpretação são infinitas, sendo isto válido para todas as obras e todos os compositores.

Julgo no entanto que é relativamente evidente que há sempre, na minha música recente, uma componente de sujidade face a estes critérios estéticos. No mesmo sentido penso que um acorde perfeito (ou imperfeito) não precisa de uma 'aura' que lhe dê uma aparência de modernidade. Moderno poderá ser tanto o discurso que encontra o atonal como o tonal, o belo como o "feio". O feio - de acordo com os critérios do 'belo musical' do anterior paradigma - tem uma enorme importância. Há quem lhe chame sublime usando a diferença kantiana. Devo dizer que é das coisas mais difíceis de tantar explicar a outros e a defender perante críticas, tal como do mesmo modo, fazê-lo inversamente a propósito de uma secção tonal, lírica, espressiva, etc, face a modernistas para os quais o simples aparecimento de tais atributos é imediata razão de rejeição. Em última análise cada um tem de compor sempre de acordo com as suas convicções e não com as de outros. Se vacilar nisto estará a um passo de uma espécie de perdição.
Prosseguindo, conforme as peças - cada uma é um artefacto artístico diverso de todos os outros - pode haver maior ou menor importância dessas componentes que referi, mas julgo que é no seu disurso articulado que se encontra a produção de sentido. Cada compositor possui as suas idiossincrasias, um conjunto de idiosincrasias, que são fulcrais para lhe dar a possibilidade de assinar.
A melodia - a mais misteriosa de todas as 'ciências humanas' como disse George Steiner - é justamente aquele parâmetro musical, digamos deste modo, no qual aquilo que é mais próprio de cada compositor se manifesta, mesmo quando na superfície não há melodia. Há sempre melodia, uma linha que conduz, por maior que seja a massa sonora.  Por isso, porque é que depois desta nota deve ser esta e não aquela? Porque é que depois deste bloco sonoro deve ser esta linha ínfima e frágil e não aquela? Estas perguntas remetem para a questão da forma e, também neste aspecto, não há modelos pre-definidos. Existe o exercício constante de auto-reflexão e auto-avaliação sem recorrer a modelos numéricos ou a sucessões ou multiplicaçõa dos tradicionais grupos de quatro compassos. Se houvesse modelos pré-definidos e utlizáveis compor seria fácil.
A liberdade é a mais dura das disciplinas.

António Pinho Vargas, 1-1-2013



    

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