Tudo o que de
humano se teme
Primeiro, em 2004, no
Grande Auditório da Fundação Calouste Gulbenkian, depois, no mesmo local, em
2012. Quem viveu um momento e o outro, sabe o que aconteceu: chegar ao fim
desses dois concertos, com a certeza de ter ouvido duas obras maiores da contemporaneidade,
dois momentos que marcam a vida, que detêm a sua essência e se impõem na memória;
dois momentos que regressam uma e outra
vez, com tudo o que de humano se hesita sequer em reconhecer. São essas obras, nesses
dois instantes das temporadas de música da Gulbenkian, que agora se editam em
disco: a oratória “Judas”, de 2002, e o “Requiem”, de 2012. Uma e a outra obra são de António Pinho Vargas. Não há um único instante na produção do compositor
que não exija pensamento, confronto, consciência do tempo e do espaço em que se
vive, e da história que (n)os sustenta.
“Judas”, o apóstolo
improvável no centro de uma oratória, uma personagem tão trágica como aquele
que traiu. É essa traição, aliás – a traição de Judas, segundo Lucas, João,
Mateus e Marcos, os quatro evangelistas –, que domina a obra e a faz terrena,
consciente do que é comum aos mortais. Tudo é drama. A perturbação é constante,
intensificada pelos instrumentos de percussão. Orquestra e vozes combinam-se num
complexo jogo de texturas, materializando as perspectivas que se acumulam. No
texto que acompanha o CD, Pinho Vargas recorda as limitações financeiras, que o
impossibilitaram de usar solistas, obrigando-o a procurar diferentes soluções.
Hoje, basta ouvir a secção em que Jesus garante que um dos apóstolos o entregará,
para não se conseguir imaginá-la de outra maneira.
“Judas” estabelece
necessariamente um elo com todas as grandes oratórias e paixões que a
antecederam. No “Requiem”, essa ligação é mais evidente. O facto é destacado
pelo compositor: “Escrever um ‘Requiem’ é, acima de tudo, ‘responder’ à história
de numerosas obras do passado”. Mas é também, como sublinha, “lidar com um
texto litúrgico” da tradição crista ocidental, “cujo sentido mais profundo remonta
ao momento em que o homem primitivo enterrou os primeiros mortos”, ou seja, ao
momento inicial do longo percurso da humanidade, consciente de si mesma.
O “Requiem” de António
Pinho Vargas é, como todos os Requiem, uma das mais íntimas possibilidades de
ligação ao que de mais misterioso se impõe da existência, a morte. É a oração
do fim de um tempo – mas é a deste tempo, com tudo o que de humano se teme. E conflui
para esse acorde “imperfeito” final, em que se materializam todas as dúvidas, a
grande incógnita. A obra coloca-se necessariamente na linha dos grandes Requiem
da história da música. Mas esse instante tão perturbador pode encontrar
paralelo também nesse fecho das “Memórias” de Rómulo de Carvalho (um outro Requiem):
“De repente, tudo se desmoronou (…). E no alvoroço dos escombros, apareceram
[os] olhos ardentes”, da companheira de décadas, que olhavam o poeta. “E é
tudo. Adeus.”
No início do verão, a
propósito da edição recente de dois outros discos do compositor – a ópera “Outro
fim” e “Drumming” –, recordava-se aqui, no JL, que António Pinho Vargas se
batera pela edição de todos os seus discos. A edição de “Judas” e do “Requiem”
não fogem à regra.
A dádiva é imensa.
A dádiva é imensa.
Maria Augusta Gonçalves
Coro e Orquestra Gulbenkian. Dir. Fernando
Eldoro (Judas
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