terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

O evento, a vida, o tempo e o vazio: a propósito do Concerto para Violino

 A música existe no tempo. 
Tendo lugar no tempo, desenrola-se a par com o tempo da vida. 
Tanto uma como outra se esfumam e abrem memórias e abismos.


A frase de Aristóteles, que citarei de seguida, será o meu ponto de partida para uma tentativa de reflexão sobre a estreia do meu Concerto para Violino (2014-2015) no domingo dia 7 de Fevereiro de 2016. Diz o filósofo: "já não é possível que o que sucedeu não tenha sucedido". Na realidade esta frase aplica-se às mais diversas acções e coisas que fazemos nas nossas vidas. Tudo se sucede no fluxo do tempo e num contexto espácio-temporal específico. Uma vez sucedido esse evento, não há maneira de não ter acontecido. Mas, enquanto evento que se eleva do que nos acontece todos os dias envolveu uma série de pessoas fundamentais para que ele possa ter existido: o criador, os intérpretes e o público, vasto e caloroso.

É importante referir que cada um nós, seres humanos, compositores ou tendo qualquer outra profissão, artística ou não, selecciona na sua vida uns instantes fugidios, uns dias inesqueciveis, aquele momento no qual se verificou um certo acontecimento marcante e sempre existe a possibilidade de enunciar um desses momentos ou dias como evento para si próprio: está sempre em aberto para qualquer pessoa. Não é exclusivo de artistas. É exclusivo dos humanos. Para mim - Heidegger dizia "o mundo é sempre-para-mim", querendo dizer para cada um de nós - este foi um evento. Para todos os outros humanos serão outros os momentos escolhidos. E também eles, uma vez tendo acontecido, não podem deixar de o ter sido.

No entanto gostaria de sublinhar as diferenças que um tal evento, como o estou a designar, pode encerrar para todos os que nele participaram não apenas em si mesmo como igualmente depois dele.

Aquilo que constituiu o evento foi a estreia do Concerto. Até esse dia era um objecto artístico que existia no seu estado potencial, tendo a condição de possibilidade mais necessária: a partitura estava escrita, a obra estava composta, mas não existia ainda como realidade sonora no espaço público.  No final do concerto, após a sua realização enquanto música foi concretizada na sua plenitude de obra musical. Fica a memória dele, para os que participaram e para os que estiveram presentes. 

Para que tal tivesse acontecido contribuiram de várias formas muitas pessoas: Tamila Kharambura, que o estudou comigo, que o reviu comigo fazendo preciosas sugestões e finalmente o tocou de forma soberba; o maestro Scott Walker, que estudou a partitura em sua casa e nos ensaios, sempre pronto para ouvir e ter em conta os meus comentários e para fazer igualmente sugestões, e que na realidade pôs de pé uma interpretação inteligente, cuidadosa e mesmo afectiva: "Well played" para Tamila, "Well done" para mim, no final do primeiro dos dois ensaios. Mas Scott Walker fê-lo dirigindo um conjunto de músicos da Orquestra Metropolitana que, desde esse primeiro contacto, aderiu à obra e a tocou com grande empenho, arte e competência. Quanto se fala de uma orquestra fala-se de um todo e não meramente de uma soma de muitos músicos.  Quando digo que "a orquestra aderiu" não sei, nem é verdadeiramente importante, que todos eles o tenham sentido da mesma maneira. O que é importante é que, enquanto orquestra, enquanto todo, aderiu, empenhou-se e tocou muito bem.

Finalmente a tudo isto assistiu uma sala cheia. O público é igualmente uma soma de muitos individuos mas, enquanto público, adquire e transforma-se numa outra entidade, colectiva, e penso - ao fim de todos estes anos - que até se ouve como ele respira, como está mergulhado na audição da obra ou não. Neste caso volta a ser enquanto colectivo que o seu comportamento durante e no final, conta e se percepciona: primeiro no silêncio quase religioso nos 25 minutos que a obra dura, depois nos aplausos e nos bravos que nos foram dirigidos com a máxima gentileza do entusiasmo.  

O evento que "uma vez acontecido não pode deixar de ter sucedido" pode ser descrito desta forma quase distanciada. Mas quando uma senhora que não conheço já fora do recinto e a caminho dos carros, depois dos abraços trocados, me diz sem sequer parar "muito obrigado por ser sua contemporânea" e rápido respondo "muito obrigado por me dirigir uma tal frase" tomo, ainda e mais uma vez, uma consciência de que algo aconteceu.  Aconteceu e dado o carácter irrepetível da música - de cada vez que é feita é sempre única - não voltará a acontecer da mesma maneira. Poderá ser de uma outra, mas aquela foi ali e não noutro lugar nem noutro tempo. Daí usar o termo evento.

Tenho o privilégio de ter uma coleccção, já não tão pequena assim, de eventos do mesmo tipo guardados comigo. Estarão presentes em mim e poderei dizer "estive lá". Esta expressão costuma ser usada para grandes comoções colectivas, como por exemplo, ter estado presente no discurso de Martin Luther King ou no dia 25 de Abril. Momentos fora do comum dos dias, momentos plenos de significado profundo que, logo ou mais tarde, se recordam como nenhuns outros. Para Alain Badiou o Evento, com letra maíuscula, que aliás associa à Ideia platónica-hegeliana, representa um acontecimento político que cria uma nova possibilidade da qual a Ideia é o nome. Não é neste sentido que estou a usar o termo. Seria uma enorme estultícia da minha parte pretender qualquer equivalência que não a meramente existencial. Nas nossas vidas, sucedem-se múltiplos acontecimentos quotidianos que não têm todos a mesma importancia simbólica, mas que não obstante existem: tomamos o pequeno almoço, dormimos, etc., e alguns de nós fazem obras de arte.

Nas nossas vidas individuais, menos gloriosas, menos "históricas", mas, em todo o caso, vidas, cada um pode fazer a sua própria selecção do muito que foi vivido e que parece ser, citando Borges, "digno de nos acompanhar até ao fim", enquanto obras de arte, aliás, o objecto (uma linha secreta) da pequena frase de Borges. Mesmo admitindo que, esta sensação de evento de alcance limitado que me domina, certamente com o exagero próprio dos artistas, possa igualmente existir um vislumbre dele em algumas pessoas, de formas privadas dentre aquele vasto conjunto presente, será talvez importante pôr em relevo as diferenças existenciais do que se segue, nos diferentes casos, em nós.

A próposito da estreia de Requiem em 2012 - um outro evento talvez similar - pude falar umas semanas depois com uma cantora do Coro Gulbenkian, da diferença, do peso diverso para os vários intervenientes activos e os espectadores, divisíveis em numerosas formas de "lá ter estado". Na altura o meu argumento foi o seguinte: enquanto que para o maestro, os membros do Coro e da Orquestra, aquilo que para mim, o compositor foi um evento ao qual se sucede um vazio apenas explicável pelo "ter sido" e nunca mais recuperável enquanto vivido, para todos eles, por maior que tenha havido uma emoção particular, sucede-se a continuação quase imediata, na semana seguinte, da actividade normal da vida musical. O maestro terá um outro programa para dirigir, o Coro uma outra obra para começar a preparar, a Orquestra, um outro programa para iniciar ensaios. Em todos eles a continuação da actividade musical sucede-se praticamente sem interrupção e, este facto das suas vidas profissionais, verifica-se semana após semana. É a ausência dessa continuidade imediata que força o compositor a ficar retido naquele momento particular de forma muito mais intensa (mesmo que tenha na sua agenda uma outra obra para compor; se não tiver o vazio torna-se com facilidade um autêntico temor).  Alguns dos próprios membros dos Coros, das Orquestras, etc., têm os seus grupos de música de câmara, ou carreiras solísticas, nos quais podem ter seguramente manifestações desse vazio de que venho falando, dado o conjunto de dificuldades que nessa esfera se verificam. Os compositores não têm o exclusivo dos vazios. 


Esse abismo do já acontecido e não repetível que, no caso de muitos dos compositores portugueses e de outras periferias, conforme funciona a vida musical nos seus países, se torna absolutamente literal - a obra não será repetida - é vivido, por mim e talvez por outros compositores da mesma forma (possibilidade que não posso nunca saber nem confirmar), como um evento que contém em si o seu próprio fim, o seu carácter único e irrepetível. Ficam portanto em paralelo duas formas quase opostas de viver o depois do evento: neste caso, o do compositor, como exaltação e perda (já foi), fundidas num único sentimento, no caso dos músicos, como um dos muitos momentos de actividade musical ininterrupta própria das instituições culturais. O mesmo se verifica no caso dos administradores culturais que, depois de cada evento, dirigem a sua energia para o próximo. Há sempre o próximo, o que nem sequer dá tempo para vazios de nenhum tipo se instalarem.

Prosseguindo neste caso mais recente, o da estreia do Concerto para Violino, o maestro Garry Walker regressa ao seu país e à sua carreira, a Orquestra inicia o estudo do próximo programa em agenda, Tamila prosseguirá a sua vida musical talvez guardando com especial afecto aquela sua performance e tudo isto é perfeitamente normal. Posso admitir que para alguns dos músicos terá ficado uma memória talvez especial daquele dia, daquele concerto (como um jovem violinista que já no átrio me disse que queria apenas dizer-me que gostou muito do concerto, com a mão no coração). Mas será em todo o caso incomparável com o do compositor. Porque este foi o criador da coisa-ela-mesmo. Uma parte de si ficou na obra enquanto coisa-feita e é por isso que advém uma dor.

No caso do público haverá uma infinidade de formas de memória, desde o esquecimento rápido de um incómodo, por parte de quem não gostou da obra, o que sempre acontece, até uma sensação de ter estado presente no momento único que foi vivido e mesmo retido por alguns com grande intensidade. Esta disparidade, esta diversidade de recepções está sempre presente e verifica-se com todos os compositores e com todas as obras, apesar de convicções erróneas em contrário.

Regressando à frase de Aristóteles, não há forma de apagar aquele momento, aquele concerto, aquele dia. Uma vez acontecido, prossegue de acordo com as múltiplas formas da sua recepção e da sua memória. Tendo acontecido não há nenhuma possibilidade de não ter acontecido. O que haverá é toda uma prática social instalada que o valoriza ou desvaloriza, sendo importante sublinhar que, em todo o caso, este aspecto se coloca sempre no depois-do-evento, na sua relação ou não-relação como ele.
 
Por maior que seja a produção activa de inexistências que caracteriza muita da nossa vida cultural face ao trabalho dos artistas locais, facto empírico de séculos demonstrável, aqueles que fazem surgir as obras neste lugar, neste espaço de enunciação nacional, mesmo esse poderoso mecanismo social que torna irrelevante muito do nosso trabalho - afecta não apenas este artista, mas a maior parte deles em todas as expressões artísticas - não poderá ir além da sua não-consideração do evento. Não pode, nem esse mecanismo interiorizado, anulá-lo, apagá-lo, fazer com que não tenha acontecido depois de ter acontecido. Pode constituir-se como obstáculo em relação ao seu destino futuro, o que sucedeu muitas vezes no passado com muitos compositores portugueses e de outros países. Mas é esse o seu grande limite e a sua incapacidade: nunca conseguirá alterar o vivido dos muitos Seres-o-aí. Esses dispositivos fazem parte de uma outra esfera da actividade social: o da política geocultural que não era o tema deste texto. 

António Pinho Vargas

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