domingo, 26 de novembro de 2017

Vários tempos históricos ( alguns dos seus mitos) e o anacronismo essencial.

Se num momento de um mero delírio histórico-literário pudéssemos imaginar que nos ia suceder a todos o mesmo que de facto aconteceu com a famosa Paixão Segundo São Mateus de J. S. Bach, ou seja, ter sido tocada em vida do compositor apenas duas vezes nos anos 1730 sendo a terceira já quase 80 anos após a morte do grande compositor em 1750, no famoso concerto de 1829, dirigido por Mendelssohn com essa obra do semi-divino compositor, então quase esquecido (diz a nota da Wikipedia sobre Mendelssohn), estaríamos a lavrar em vários e enormes erros. 

Primeiro, a razão de ser de tal atraso da 3ª vez, deve-se ao facto de somente no século XIX se ter constituído a "história da música" tal como a conhecemos hoje, devendo acrescentar-se "ocidental" para manter algum rigor geocultural e, assim sendo, se foi criando o museu imaginário que hoje vigora, com 90 % de repertório histórico dos séc.XVIII e XIX até, grosso modo, à I Guerra Mundial (um autêntico fim de um mundo). Mas a um fim de um mundo sucede sempre (até ver) o começo de um outro. O segundo erro seria pensar que a história se iria repetir nos mesmo termos e, além disso, como se todos tivéssemos atingido, no nosso esforço individual, aquele patamar inalcançável de genialidade, bastando-nos esperar 80 anos após a nossa morte para chegar enfim o reconhecimento póstumo e, quem sabe, eterno. Nada disto irá acontecer nos mesmos termos, repito, apesar de discursos não muito afastados deste delírio serem muitas vezes ouvidos como plausíveis. Na verdade e para já, a parte que nos cabe na absurda comparação não é essa, mas a outra. No séc. XVIII fazia-se a música para aquele dia, aquela celebração, aquele rei, aquele arcebispo. A música de Bach e de muitos outros, sabemos hoje, era maravilhosa, extraordinária, inacreditável. Mas no seu tempo não era ouvida com o pensamento dirigido para o futuro, nem propriamente para a história. A primeira biografia de um compositor a ser escrita e publicada foi-o apenas em 1800 por Johan Nicolaus Forkel sobre justamente J.S. Bach. Mesmo assim só 30 anos mais tarde a
monumental Paixão foi repetida em concerto. Convém assinalar deste já: nos últimos anos da sua vida a sua música era então vista como anacrónica e já não fazia parte da vida musical activa. Era o tempo dos seus filhos. Voltarei e este aspecto. Actualmente, como todos sabemos, é repetida, interpretada, todos os anos em muitas partes do mundo.

Que conclusão tirar? A de que tudo isto aconteceu num certo tempo e espaço (a Europa) e que o mundo hoje é deveras diferente. A única coisa semelhante - o tal outro lado que nos interessa - é o lado artesanal com o qual eles viviam as suas vidas de artistas e nós vivemos as nossas, se formos lúcidos, de igual modo sem qualquer expectativa de história no seu e no nosso fazer para esta ou aquela circunstância, aquilo que é o nosso trabalho, como o deles era o seu. Morriam bem consigo próprios. Tinham tido vidas ricas, plenas. Mas sem qualquer expectativa histórica. Não fazia parte do seu mundo, do seu modo de ver e existir nele. Como nada se repete, nem as organizações sociais do mundo musical são as mesmas, os milhões de compositores no mundo actual não podem ter nenhuma expectativa que se possa comparar com o exemplo referido. Nem em genialidade, o que é geralmente aceite, nem em nada. Quem poderá imaginar, estando no seu juízo perfeito, que após 80 anos das nossas mortes de repente e no prazo previsto iria acontecer, multiplicado por milhões, aquilo que aconteceu a Bach e a umas poucas dezenas de homens que fizeram a maravilhosa música que nos ocupa o terreno de tal modo se constituiu, nas salas de concertos naquilo que já era então: uma 'common practice'. Nem o mais ingénuo vírus historicista pode imaginar qualquer ponto de semelhança face ao abismo que separa os mundos deles e os nossos. Da música nem se fala por mais que eu possa considerar que, ontem ou hoje, houve ou há igualmente compositores e música maravilhosa nas mais diversas práticas musicais. Isso é apenas o que eu penso - há mais música muito boa - mas a questão não é essa.
Os modos de apresentação para nós desviam-se da repetição constante da música do passado para a um novo tipo de apresentação localizada e de âmbito mais restrito, em tudo mais semelhante à do século XVIII do que à dos seguintes. O mundo é de tal modo diferente que nada se pode produzir outra vez, por exemplo, a Revolução Francesa e foi ela que mudou o mundo para o novo caminho que então começava. Ela aconteceu naquele mundo e mudou-o: entre as mudanças ocorreu o começo dos concertos públicos. A primeira sala de concertos construída para tal fim foi a Gewandhaus de Leipzig, nos anos 1830. Hoje há milhares de salas de concertos no mundo e nesta área musical específica o repertório dominante é composto principalmente por música dos séculos XVIII, XIX e um conjunto muito menor de obras de compositores do século XX entre as quais avultam algumas obras de Stravinsky, Sinfonias e Concertos de Shostakovich, as óperas de Alban Berg
e, em menor grau, alguns obras dispersas de outros compositores. 

Outras revoluções
poderão acontecer, posso conceder, mesmo com as maiores dúvidas sobre isso, mas serão simplesmente outras. A sociedade não estará nunca condenada a ser uma mera repetição do presente, ideia muito difundida, tanto como todos os mitos que a sustentam. Por muito que a nossa reduzida imaginação nos limite, simplesmente teremos de admitir que o futuro sempre se caracterizou não só não estar escrito, como por vir a ser aquilo que nem sequer podemos imaginar. As previsões dos futurólogos costumam falhar sempre. Os horizontes estão abertos para os vindouros mesmo quando nada parece ser exaltante nos horizontes que hoje vemos. Esses são os que vemos. Mas os que não sabemos como serão, nem podemos ver é que serão os reais, os por-vir, quer sejam apocalípticos - fins do mundo - quer sejam 'admiráveis mundos novos' com humanos e chips super-inteligentes implantados no cérebro. Será isto ainda um humano? Nem isso sabemos. Podemos talvez desconfiar que não. Arte sempre haverá, música sempre haverá. Será é outra e nunca poderá ser mera repetição, nem no seu fazer, nem no seu ser, nem no seu lugar nas sociedades como se irá vendo eventualmente. A arte do passado no seu carácter monumental e patrimonial é perene. Os seus modos de contemplação e consumo serão provavelmente diferentes. Não sabemos. Mas, como escreve Georges Didi.Huberman "a história da arte começa sempre duas vezes", frase algo misteriosa à primeira leitura, mesmo tendo nós presente o caso da obra de Bach referido: começo real em 1730 e (re)começo simbólico 1830, cem anos mais tarde.

O que resta afirmar é o mais importante. 


Tudo o que referi revela a instabilidade do tempo, da arte enquanto tal - e enquanto instituição - na sua relação com o tempo social: esquecida, tornada canónica, novamente esquecida, de novo canónica e assim sucessivamente. Aquilo que não referi reside nas próprias obras como potência anacrónica de ser sempre e não em qualquer instituição legitimadora. Portanto anacrónica no sentido de pertencer, na sua própria essência e potência, a vários tempos, potência de ser passado e futuro, para além do seu próprio tempo no agora.
O seu desígnio ultrapassa as determinações sociais, elas sim, fixadas em tempos mais fáceis de identificar. As histórias que existem, da música, das artes, da literatura, etc., traduzem os critérios que em cada momento histórico são os prevalecentes e determinantes para estabelecer os cânones e as exclusões. No entanto, estes critérios são mais voláteis e mais "históricos" do que as artes propriamente ditas. 


Cada obra contém em si um potencial de eternidade. 


Nesse sentido rompe com os elos que a ligam ao seu tempo enquanto ao mesmo tempo os manifesta. Esses elos manifestam-se nas obras, tanto quanto aquilo que lhes dá o potencial de eternidade. A todas elas? Não o creio. Mas, de modo idêntico, não podemos saber com nenhuma clareza quais são aquelas nas quais se manifesta o magnífico anacronismo-de-ser-arte, que lhes permitirá a eternidade enquanto arte. Os artistas fazem
o seu trabalho, como fizeram no passado. Continuarão a fazê-lo no futuro. Nesse acto-de-fazer estão, por assim dizer, fora do tempo sendo essa uma dimensão individual. Face às dificuldades do tempo presente, aos artistas cabe-lhes acima de tudo a tarefa de levar a cabo, de cada vez, o mergulho no essencial de cada arte.
Tudo o resto os transcende, nos transcende e, na realidade, não interessa muito. Não sabemos nem nunca saberemos. Fizemos o nosso trabalho e, sendo humanos, somos mortais, ao contrário do que a arte poderá ser.

António Pinho Vargas, Novembro 2017.

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