sábado, 21 de abril de 2018

História e o vivido (que nem sempre é "histórico")

Qualquer general das batalhas do passado sabia que avaliar as forças do inimigo era uma parte muito importante das decisões relativas à disposição das tropas no terreno e das deliberações sobre a estratégia a adoptar. Mesmo assim, em cada batalha, no final houve quase sempre vencedores e vencidos. Em poucos casos a situação ficou como que indefinida, sem clareza quanto ao vencedor. Normalmente nestes casos era o que estava-para-vir que poderia definir se a retirada poderia vir a ser um adiamento da vitória futura para um dos contentores, ou seja, do vencedor não talvez da batalha mas da guerra. A decisão da vitória não se definia apenas pela soma das batalhas mas colocava-se sobretudo em termos da estratégia geral da guerra em questão entre contentores. Os historiadores, quando escrevem, já sabem o que aconteceu posteriormente e a sua narrativa é inevitavelmente afectada por esse conhecimento do que estava por-vir.

No caso que me interessa abordar julgo que não se pode colocar a questão nestes termos. Em primeiro lugar não há nenhuma guerra; em segundo lugar não há propriamente vencedores nem vencidos. Tratando-se de arte quando muito pode-se verificar onde e quando residem as hegemonias de certas direcções, de certas correntes num dado momento histórico, a eterna sucessão de novas obras criadas para um destino incerto (o que não é um exclusivo deste tempo, mas do tempo). Nem sequer a História, que nas guerras descritas posteriormente em relação aos factos ocorridos e não durante a sua existência real no tempo, naquele tempo vivido na luta, vem em auxílio dos historiadores que munidos desse saber posterior, sublinham logo o potencial de vitória ou derrota em cada caso de incerteza. Os critérios de selecção do passado mudaram e mudam muitas vezes, Na arte verifica-se que num dado momento histórico uma tendência, uma prática, uma arte parece ser dominante - sendo-o de facto naquele tempo - mas algumas décadas mais tarde essa tendência dominante do ponto de vista simbólico ou real, como que se esfuma, perde energia criativa e torna-se cada vez menos dominante, do ponto de vista dos seguidores, da importância no ensino, da importância quantitativa em número de concertos, de exposições, ou mesmo, no valor económico das pinturas que, neste tempo em que escrevo, se elevaram nas artes plásticas a números impensáveis há algumas décadas. Todos estes factores consideram sobretudo a recepção de obras, o seu impacto num determinado campo social, numa determinada região do mundo - uma geo-cultura - e talvez a sua capacidade de reprodução noutras obras durante um certo tempo, mais do que propriamente qualquer julgamento de valor que considere um indiscutível de uma vez por todas. Pode parecer indiscutível num certo espaço-tempo, o que será certamente verificável nos muitos livros chamados história da arte, história da música, história do cinema, etc. Neles, a descrição é afirmativa e definitiva, ao ponto de, ao ler livros antigos, ou muito antigos, nos espantarmos com as diferenças entre o que foi escrito então e aquilo que nos parece hoje. Varia sempre.

Estamos impedidos de considerar o futuro antes dele acontecer, a não ser como lugar do tempo onde depositamos os nossos desejos ou as nossas preocupações, mas não há razão plausível que nos impeça de poder prever ou antecipar que idênticas surpresas irão ocorrer. Dito isto, o desconhecimento do futuro não impede que, neste momento, como antes em vários momentos do passado, cada autor/historiador tenha afirmado (ou afirme hoje) com total convicção o potencial de futuro desta ou daquela obra ou corrente ou modo-de-fazer.  Nesta perspectiva o futuro não existe ainda, mas o que existe já enquanto anúncio-da-legitimação é a convicção de que o futuro não deixará de atribuir àquilo que, em suma, nós acreditamos hoje, ou seja, o mesmo valor. O futuro surge deste modo com relativa frequência discursiva no presente - com funções legitimadoras no presente - embora na realidade se esteja perante uma projecção de um desejo, de uma crença, de uma convicção, de um receio. O acto de projectar no futuro aquilo em que hoje acreditamos aumenta aparentemente a nossa segurança, e, nos casos conhecidos, a nossa "filosofia da história", é um garante prévio da justeza das nossas crenças actuais. A esta atitude chamou-se "historicismo" quando foi necessário verificar que muitas previsões, pura e simplesmente, não se concretizaram. Na verdade, nos textos antigos - dos vários séculos - com alguma dose variável de "cientificidade" verbal, tal discurso serviu para tornar mais certo um determinado desenrolar futuro ao ponto de, mesmo após um falhanço da previsão, se poder continuar na crença anterior com base no argumento de que ainda não se verificou mas mais tarde ou mais cedo irá acontecer. Tomemos como exemplo o Juízo Final. Acima de todas estas projecções avulta a marxista enquanto argumentário sobre o fim do capitalismo como necessidade histórica.  Neste caso muitas páginas foram escritas tanto num sentido como no seu oposto e o termo emancipação substituiu hoje não apenas o comunismo como mesmo o socialismo. Infelizmente para nós, incluindo-me eu no grupo dos que desejariam um tal desígnio para as sociedades humanas, a emancipação social, o que verificamos hoje é o crescimento do seu contrário: o aumento das desigualdades globais. No entanto daqui não se pode inferir que a situação actual se irá manter indefinidamente. Pode-se declarar sem erro que essa é a realidade actual mas, do mesmo modo, não podemos fechar todas as portas que o futuro mantém potencialmente abertas. A repetição eterna do presente é um dos grandes ocultos não-ditos de cada época e uma prova da nossa falta de imaginação persistente. 

O cânone musical ocidental estabeleceu-se gradualmente ao longo do séc. XIX, transformou-se e aprofundou-se durante a primeira metade do século XX e sofreu nova transformação na segunda metade do século de forma ainda mais radical no que respeita ao seu lugar na vida cultural dos países da Europa e os seus lugares similares espalhados pelo mundo "ocidental". A tradição da música escrita europeia, com inícios por volta do ano 1000, que até 1900 teve um lugar particular nas sociedades europeias com forte presença da música do seu tempo, de cada tempo, até cerca de 1800 indiferente ao conceito de história e mesmo de obra, tornou-se nas últimas décadas cada vez mais um museu imaginário (Lydia Goehr:1992) no qual cerca de 90% do repertório apresentado nas salas de concertos pertence ao passado, com as suas grandes obras, os seus grande nomes, tornando-se uma arte de interpretação mais presente, mais real, do que uma arte de criação. Esta foi-se reduzindo, gradual e inexoravelmente, até aos cerca de 10% restantes e, em certos casos, ocupa lugares particulares e intérpretes especializados. Não houve, desde 1950 até hoje nenhuma corrente musical que conseguisse inverter esta tendência geral. O espaço da criação, que prossegue, dividido em numerosas e diversas práticas e orientações, defronta no espaço público a força do repertório do passado, a força do jazz, iniciado por volta de 1900 nos EUA e, ainda em maior grau, da música pop-rock surgida nos anos 1960 nos países de língua inglesa. O seu impacto foi brutal na economia das artes musicais e existe elevada criatividade em todas essas práticas musicais. A indústria cultural que a regula, que Adorno tentou diabolizar, não deve fazer-nos negligenciar estes outros aspectos, tão reais e dignos de consideração como a sua existência.

Até este ponto podemos ir com segurança - pertence ao passado e ao presente, sendo até dispensável a competência específica de um historiador - mas projectar um futuro está para além do nosso alcance, sejam quais forem as nossas convicções.
Em todo o caso de cada vez que alguém compõe um nova obra, esse facto contém em si um mundo, seja qual for o lugar social que as estruturas sociais lhe reservem. São artefactos humanos artísticos dotados de existência e, como tal, obras de arte. Tudo o resto se refere às transformações ocorridas na sua inserção no mundo musical - ele próprio muito diferente hoje - e nas sociedades, igualmente muito diversas. Não interfere nas obras. Interfere na sua recepção e no seu alcance imediato.

A metáfora inicial sobre generais e batalhas, estranhamente suspensa até este parágrafo final, mostra-nos que apenas depois se sabe quem foram os vencedores e igualmente, que não vale a pena travar nenhuma batalha inútil se não houver nenhuma hipótese de a vencer. A retirada sempre foi uma estratégia militar. Apenas o vivido é, por definição e por si mesmo, merecedor de todos os combates.
Noutros termos, por vivido, considero uma vasta gama de coisas da existência, de aspectos, de modos de existir, que transcendem em absoluto qualquer arte.  Considerando toda esta variedade, pode-se considerar talvez ser necessário separar a vida das obras de arte, da vida em si. Tudo contém significado e um valor. Se restringirmos à recepção, tomada no seu sentido mais amplo - os outros, as determinações das várias esferas de actividade, etc - então desloca-se para o exterior, um exterior qualquer, tudo aquilo que tem valor dentro (e não fora) de si. As obras realizadas, o trabalho feito, as relações humanas que fomos capazes de estabelecer durante a vida, uma imensidão das coisas mais diversas, são aspectos absolutamente independentes daquilo que pertence à esfera da recepção, no caso das artes, ou à esfera do reconhecimento amplo por outros, nos outros casos eventualmente menos ilustres. Mas o seu valor é idêntico. Nele, na sua infinita variedade, reside uma parte importante do sentido da vida. A arte não tem nenhum privilégio (Georges Didi-Huberman) deste ponto de vista essencial.

Goehr, Lydia. The Imaginary Museum of Musical Works: an Essay in the Philosophy of Music (Oxford, 1992)

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